UM RELATO FINAL

A zona que me separa do caos absoluto é muito tênue. Essa linha imaginária vem desaparecendo e estou sendo absorvido pela escuridão.

Perambulo, vez ou outra, ainda solerte nas ruas imundas do centro de São Paulo, procurando ser o que não mais consigo. Um dia estudei com interesse e eficiência, tenho esposa e filhos, tive uma empresa, enfim, um espaço e alguma importância nessa vida. De administrador com razoável sucesso passei à dependente químico. No início, foi um “tapinha” na maconha entre amigos; logo veio a cocaína e o álcool em festas e até no trabalho, mas depois o crack me dominou. Essa é, há muito, a minha única atividade; foi o que me restou.

Moro na Rio Branco ou na Princesa Isabel, dependendo da ação da Polícia. Apanhei várias vezes. Por aqui estão alguns dos meus parceiros ainda vivos. Gosto deles; são a minha família. Acho que já perdi uns trinta ou quarenta quilos. Tenho sensações de poder e de euforia. Eu adoro isso, mas rapidamente passa; daí, quero mais. Não sei bem os motivos pelos quais cheguei nesse submundo; tive pouco tempo livre para refletir. Hoje, preciso de muitas pedras por dia; não suporto a depressão, e até merla me deram para sair do buraco. Fui internado algumas vezes pela minha mulher. Parecia até que seria fácil voltar à vida, mas não foi! Fui pra casa em todas essas oportunidades, mas sempre retornei ao meu insano dia-a-dia.

Acho até que já desistiram de mim; última vez que fui atrás deles, não consegui e me escondi ao vê-los. Outro dia achei ter visto um dos meus filhos me procurando entre os trastes que nos tornamos. Estou fedendo. Penso que já faz uns oito anos que ando por aí.

Estou escrevendo enquanto consigo e para que esse relato possa ser lido por alguém. Vou deixá-lo em meu bolso quando me acharem.

Já assaltei e agredi pessoas, mas nunca matei nem tive uma arma. A minha imagem está tão horrível que uma arma é dispensável. Agora não consigo mais correr e peço dinheiro quando não estou muito chapado. Vendia cachimbos que eu mesmo fazia. Era bom nisso. Eu cobrava em média dez reais os de bambu e massa e até vinte reais os de metal com rosca pra tirar a resina. Não os faço mais.

Tentei me atirar do viaduto aqui perto, mas não fui capaz. Choro de vez em quando; ao menos eu acho que é choro. Já estou mijando e cagando nas calças; nem percebo quando isso acontece. Sigo ou fico deitado sob a marquise e fumo mais uma. Tive um barraco que derrubaram; levei comigo o meu colchão e cobertor. Também não consigo mais dormir. Por vezes caminho, mas parece ser em círculos. Os fornecedores são muitos; passam por aqui a toda hora. O preço da pedra da boa está aumentando muito! Consigo as outras mais baratas. Tenho muita raiva. O pessoal da Prefeitura está sempre por perto. Uma mulher disse ser assistente social e me cadastrou. Fica atrás de mim pra me levar ao Centro de Tratamento. Até já fui umas três ou quatro vezes e tudo é sempre igual: me dão banho, roupas limpas, comida, uns remédios, palestra dos 12 passos; fico lá por uns dias. Sempre querem fazer contato com minha família e não permito. Me dá uma fissura e volto às ruas.

Cansei. Preciso sumir, mas não encontro forças. Está muito difícil respirar. Não sinto mais frio nem calor e não tenho fome. Não sirvo nem pra isso! Joguei fora a última lágrima que me restava e não quero mais viver sem razão. Acabou a urgência.