A manhã começava devagar no vilarejo de São Bento das Veredas. O orvalho escorria pelas folhas do milho, e os galos, pontuais como sinos, anunciavam a chegada do sol. Dona Lurdes já começava a preparar o almoço no fogão a lenha, enquanto Zé Pardo selava o cavalo para mais um dia de trabalho na roça. Tudo ali seguia um ritmo antigo, como se o tempo fosse medido não por relógios, mas pelo canto dos pássaros e o cheiro da mata e terra molhada.
Mas, naquela quarta-feira, havia um silêncio diferente no ar — pesado, denso, como se o campo segurasse a respiração.
Foi Tonico, o rapaz da venda, quem encontrou o corpo. Ao atravessar a ponte de madeira que ligava a estrada principal ao sítio dos Ribeiro, viu um chapéu de palha boiando no riacho. Curioso, desceu pela barranca e, entre as
pedras cobertas de musgo, viu os olhos vidrados de Sebastião Ribeiro, o fazendeiro mais temido — e respeitado — da região. Um filete de sangue escorria da nuca para dentro d’água.
— Santo Deus… — Tonico murmurou, recuando, sentindo o estômago
embrulhar.
Em poucos minutos, o povoado inteiro já sabia: “Mataram o Tião Ribeiro.”
O delegado aposentado, seu Arlindo, foi chamado às pressas. Embora vivesse de criar galinhas depois da aposentadoria, ainda impunha respeito. Analisou a cena com olhos experientes: sem sinais de luta, apenas o golpe
certeiro na nuca, como quem mata por raiva fria.
Os rumores começaram a crescer como capim na beira da estrada. Uns diziam que era vingança de um meeiro explorado. Outros, que Tião tinha descoberto alguma traição. Houve até quem jurasse ter visto uma luz estranha
no matagal na noite anterior, como lamparina de alma penada.
Entre os suspeitos, três nomes se destacavam:
— João Eustáquio, trabalhador da fazenda, demitido sem explicações há dois meses.
— Mariana, a nora de Tião, que vivia sob as grosserias do sogro.
— Padre Osório, que discutira com Tião no último domingo sobre a doação de terras à paróquia.
Na tarde seguinte, seu Arlindo reuniu meia dúzia de homens no alpendre da venda para ouvir depoimentos. Cada palavra era pesada, cada olhar, uma ponta de faca.
— Eu não matei ninguém, seu Arlindo! — João Eustáquio gritou, suando como quem carrega culpa ou desespero.
— Não grita comigo, homem — respondeu Seu Arlindo, firme. — Quem não deve, não teme.
Mariana, por sua vez, falava baixo, mas seus olhos ardiam.
— Motivos não faltam pra alguém querer matar o velho Tião… Mas não fui eu!
Não seria burra de sujar as minhas mãos naquele miserável.
Enquanto isso, as galinhas ciscavam no terreiro, indiferentes à tragédia humana. O campo continuava verde, o vento soprava nas palhas secas, e a vida — como sempre — fingia seguir em frente como se nada tivesse acontecido.
Ao cair da noite, Seu Arlindo voltou à cena do crime. Perto da ponte, apontando a sua lanterna, encontrou uma marca funda na lama: uma bota de couro com a sola cortada no canto. Conhecia bem aquela marca — só João
Eustáquio usava botas assim. Logo ao lado, havia também um lenço de seda azul, igual ao que Mariana costumava amarrar no cabelo. E, pendurado num galho baixo, um crucifixo idêntico ao do Padre Osório.
Três pistas. Três caminhos, mas nenhum certeiro.
Arlindo respirou fundo. Sabia que no campo, as verdades costumavam se esconder melhor que tatu em toca. E também sabia que, quando o silêncio pesa mais que o vento, é porque há mais de uma verdade enterrada.
Na manhã seguinte, o povoado acordou como sempre: galos cantando, café no coador de pano, bois mugindo ao longe. O corpo de Tião já tinha sido enterrado, mas a pergunta pairava no ar como neblina teimosa: Quem matou
Sebastião Ribeiro?
O riacho corria indiferente, levando com ele um segredo que ninguém — ou talvez apenas um — carregava no coração.
A neblina daquela manhã parecia mais espessa que de costume. A ponte onde Tião Ribeiro fora encontrado estava cercada por olhos curiosos — e silenciosos. Gente do vilarejo que, por fora, fingia estar ali apenas por
respeito, mas, por dentro, queimava de desejo por um detalhe novo, um nome, um boato fresco para mastigar junto com o pão de milho.
Seu Arlindo, de chapéu baixo e olhar atento, caminhava devagar ao redor do riacho. A cena do crime já estava “limpa”, mas ele sabia: o campo sempre guarda vestígios, mesmo quando a chuva parece ter lavado tudo. O que o intrigava não eram apenas as pistas contraditórias, mas a forma como elas estavam lá: “perfeitas demais”.
— Isso aqui tá cheirando mais a armadilha — murmurou, coçando o queixo grisalho.
À tarde, ele chamou novamente os três principais suspeitos para uma conversa mais reservada no celeiro da antiga cooperativa. Não havia polícia oficial ali, mas todos sabiam que, quando Seu Arlindo fazia esse tipo de
reunião, era como se fosse um interrogatório de verdade.
João Eustáquio foi o primeiro.
— João, sua bota deixou rastro na lama. Ou ocê foi lá antes ou depois. — Seu Arlindo falou maliciosamente.
— Eu passei por ali, sim. Mas foi dois dias antes! Fui caçar tatu… O senhor bem sabe que aquele mato é bom pra caça… A voz do homem tremia, mas não parecia mentir.
Mariana entrou em seguida. Carregava um lenço azul no pescoço, não no cabelo. Seu Arlindo notou o detalhe.
— Um lenço igual a esse aí apareceu na cena. Quer me explicar?
Ela respirou fundo, o olhar parado no chão batido.
— Eu estive lá… — disse, com voz firme. — Mas não no dia da morte. Fui encontrar alguém.
— Alguém? — Seu Arlindo estreitou os olhos. — Quem?
Ela hesitou. E, nesse breve silêncio, o galo da venda cantou ao longe.
— Não posso falar.
O padre foi o último. De batina puída e crucifixo no pescoço, parecia mais nervoso do que os outros dois juntos. Quando Seu Arlindo mostrou o crucifixo encontrado no galho, ele empalideceu.
— Isso… isso não pode ser. Meu crucifixo desapareceu há três dias. Achei que fosse coisa de moleque.
— Três dias — repetiu Seu Arlindo, marcando mentalmente. — E ninguém sabia disso?
— Não…
Lá fora, um trovão distante anunciou chuva. O ar ficou mais denso, e o cheiro de terra molhada começou a invadir o celeiro.
Enquanto os três eram liberados, Arlindo sentou-se num caixote e juntou as peças:
– A bota de João podia ser rastro antigo.
– O lenço de Mariana era real, mas ela não disse com quem se encontrou.
– O crucifixo do padre estava desaparecido antes do crime.
Alguém estava montando um teatro. E muito bem.
Naquela noite, Seu Arlindo foi até o antigo galpão de máquinas abandonado havia anos. Ouviu passos. Lentamente, sacou o canivete — velho hábito de policial aposentado. Entre tábuas soltas, encontrou pegadas recentes… e algo
que gelou seu sangue: a carteira de identidade de Tião Ribeiro, aberta, e uma carta dobrada, escrita com caligrafia tremida:
“Ele sabe. Se eu não fizer, ele conta tudo. E aí acaba tudo pra nós dois.”
Não havia nome. Apenas a inicial “M.” no rodapé.
Na manhã seguinte, Mariana foi vista caminhando sozinha até a igrejinha. João Eustáquio sumiu da vila antes do sol nascer. E o padre Osório mandou suspender todas as missas por “motivos de segurança espiritual”.
O galo cantou de novo. O mesmo canto, o mesmo vilarejo — mas agora ninguém se olhava da mesma forma.
Seu Arlindo sabia: Tião Ribeiro não morrera por acaso. Aquele assassinato tinha raiz funda, daquelas que crescem anos debaixo da terra até darem fruto envenenado.
E a inicial “M.” não era o suficiente para apontar culpado; mas era o bastante para acender uma fogueira no coração do povoado.
Quem for o culpado, vai se entregar uma hora ou outra — murmurou Seu Arlindo, olhando o céu nublado. Ou a roça mesmo vai tratar de mostrar…