O CONVENTO DO SINO FATAL

A névoa da colina rastejava como uma criatura viva, serpenteando pelas pedras úmidas do Convento de Santa Cecília. A construção, cinza e imponente, erguia-se como uma cicatriz no horizonte, com vitrais gastos, telhas lascadas e uma torre alta demais — como se quisesse tocar algo que não era o céu.

No interior, o silêncio era denso. Um silêncio que não era paz — era espera.

Irmã Teresa subiu a escada em espiral da torre naquela madrugada gelada. A porta estava entreaberta, o cadeado estilhaçado no chão, coberto por uma gosma escura e pegajosa que grudava nos dedos. O cheiro era metálico, como ferro fresco… ou sangue.

Os degraus de pedra estavam frios e úmidos, como se alguém os tivesse lavado com água gelada — ou com outra coisa. Teresa levou o rosário à boca, respirando rápido. Cada passo fazia ecoar um estalo seco, como ossos se partindo à distância.

No topo, encontrou o sino balançando sozinho. A corda retorcida, tensa como um tendão prestes a arrebentar. No chão, o véu de irmã Angélica, sujo de lama e com respingos de sangue escuro, já coagulado. Ao lado, um crucifixo partido ao meio, e marcas de unhas arranhando a madeira da janela — marcas profundas, desesperadas.

Do lado de fora, a neblina subia e escondia a colina.

Na manhã seguinte, disseram que Angélica “fora transferida”.

           Mas, ao passar pelo jardim do convento, Teresa viu rastros vermelhos misturados à terra. O sangue escorria discretamente por entre as pedras da calçada, como se o próprio chão sangrasse.

As freiras andavam como sombras. Algumas murmuravam orações em latim que Teresa nunca ouvira na capela. Outras, mais velhas, mantinham os olhos baixos — como quem já vira tudo antes, e preferia fingir que não via mais.

Na terceira noite, o sino soou sozinho. Sete badaladas. Graves, úmidas, como se viessem de dentro de um corpo morto. Teresa não dormiu. Ouviu passos lentos no corredor — arrastados, acompanhados de um som úmido, pegajoso, como carne sendo puxada pelo chão.

Saiu da cela. Na penumbra, viu uma figura de túnica branca manchada de vermelho. O capuz cobria o rosto, mas o que escorria das mangas não era água.

Angélica…? — sussurrou Teresa, a voz falhando.

A figura virou lentamente. Não tinha olhos. Apenas dois buracos negros, fundos, e sangue escorrendo pelo que restava do rosto. Em suas mãos, o terço estava retorcido em volta dos dedos como arame farpado.

Antes que Teresa gritasse, a figura sumiu — evaporou na escuridão como um sopro gelado.

Irmã Helena, mais velha e com cicatrizes que preferia não explicar, decidiu quebrar o silêncio. Levou Teresa até a pequena portinhola atrás do altar.

— “A torre é a boca de cima”, murmurou Helena. “Mas a fome vem de baixo.”

Descendo as escadas escondidas, o cheiro de ferro se tornou insuportável. Moscas zumbiam. No fundo, uma sala circular de pedra. No centro, um poço coberto por tábuas encharcadas de sangue seco. As paredes estavam cobertas de marcas: crucifixos invertidos, nomes riscados com unhas e… pedaços de véus costurados com fios de cabelo.

Ao redor, sete cruzes no chão. Seis tinham nomes riscados. A sétima… vazia.

O silêncio foi quebrado por um estalo seco vindo do poço. Depois, respiração. Depois, vozes sussurrando orações ao contrário.

Uma das tábuas inchou como se algo empurrasse por baixo. E então, um braço branco — esquelético, coberto de cortes profundos — emergiu. O terço de Teresa pendia do pulso.

Helena correu. Mas quando chegou à torre, a madre superiora já a esperava.

— “Eu vi o poço”, ofegou Helena. “Eu vi as marcas. Vocês jogaram todas lá!”

A madre sorriu. Um sorriso fino, tão frio que parecia não pertencer a um rosto humano.

— “Não nós. Ele.”

— “Ele quem?”

A madre apontou para o sino. As cordas começaram a se mover sozinhas. O bronze vibrou como um grito.

E então Helena viu: da boca do sino escorria sangue — um fio grosso e quente, pingando sobre as tábuas do chão.

O som foi tão forte que rachou as janelas da torre. As freiras no pátio olharam para cima. Uma figura pendia da janela: Helena, com o pescoço quebrado em um ângulo impossível, os olhos arregalados, o terço cravado nas palmas das mãos como pregos.

Lá embaixo, a tampa do poço se abriu com um estrondo. Algo respirava lá dentro — e não era humano.

Na manhã seguinte, anunciaram a “transferência” de Helena.

As novatas chegaram no dia seguinte. O ciclo sempre recomeçava.

Mas à noite, o sino não bateu sete vezes. Bateu oito.

E no corredor das celas, freiras juram ter visto véus ensanguentados arrastando-se pelo chão… como se alguém, ou algo, tivesse subido do poço.

E dentro da torre, na parede de pedra, apareceu um novo nome riscado com sangue fresco:

TERESA.

🩸      “Oito desceram. A nona sangrará.”

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