TESTEMUNHA DE DEFESA

O Juiz permanecia atento e imóvel em sua imponente cadeira de espaldar alto.

Em pé, o Dr. Bradley Norman, Promotor nomeado para o caso, andava de um lado para outro, gesticulando e falando alto com voz grave ao acusar “aquele monstro” – como dizia – de ter estuprado uma menina de apenas nove anos, rasgando a sua vagina pela violência da penetração e, a seguir, de a ter matado com diversas facadas.

Em absoluto silêncio todos os presentes, moradores da comunidade local, ouviam cada palavra proferida pelo acusador. Sem dúvida era uma barbárie que lhes estava sendo apresentada.

Por sua vez, o Dr. Clayton Scott, advogado de defesa, mantinha-se inquieto; revirava documentos e, ao mesmo tempo, procurava ler os pensamentos dos doze jurados durante o desempenho do acusador.

O acusado, homem desconhecido na região, corpulento e com cara de poucos amigos, estava sentado no banco dos réus, olhos voltados para baixo, mãos algemadas para frente e escoltado por dois seguranças penitenciários.

– “Animal!”.

Esse era um dos tantos adjetivos utilizados pelo Promotor quando se referia ao réu. Para causar o impacto pretendido depois de demorada retórica, mandou projetar várias fotos do corpo da vítima numa grande tela em frente aos jurados.

Ela era a linda filha caçula de um antigo xerife daquele condado de Ashville e todos a conheciam. Os jurados, como previsto pelo acusador, ficaram enojados com as imagens expostas.

– Senhores jurados, a condenação à pena de morte é a única opção para esse “monstro”. Este bizarro assassino deve pagar muito caro pelos seus atos. Eu lhes imploro: não o absolvam, pois, caso contrário, a próxima vítima poderá ser um de seus filhos.

O crime não teve testemunhas. Teria ocorrido em uns matos da área rural e o corpo da vítima, já em decomposição, foi localizado após cinco dias de intensa busca. As investigações foram ineficazes, uma vez que a polícia não conseguiu identificar digitais, sêmen ou quaisquer outras provas materiais que indicassem o criminoso. Porém, um retrato falado foi feito através das informações de uma velha senhora que afirmava ter avistado um homem saindo em disparada daquele matagal bem na época dos fatos.

Durante um longo tempo, aquele retrato falado ficou afixado na parede da Delegacia Policial e, também, em vários pontos visíveis do condado. Esta era, infelizmente, a única pista a indicar o possível assassino até o dia em que ocorreu a prisão do acusado. A população clamava por justiça.

Passada a palavra ao defensor, iniciou-se uma vaia incontida do público, somente sendo interrompida pela enérgica ameaça do Juiz em retirar todos do ambiente.

Dr. Scott, o advogado de defesa, há muito trabalhava em causas chamadas de “perdidas”. Aliás, eram essas as suas preferidas. Conhecido na região por ter uma invejável habilidade em defesa dos seus clientes, também possuía uma equipe de assessores e investigadores de causar inveja às melhores firmas de advocacia. Era um homem imprevisível, de excelente oratória e profundo conhecimento criminal.  

A tese seria a de negativa da autoria; não teria sido o réu o estuprador e assassino daquela pobre menina. O crime ocorrera há dois anos e, até pouco tempo, nenhum suspeito surgira.

– Senhores jurados, estamos diante de uma enorme injustiça. O Promotor, com maestria, mas incidindo em graves equívocos, traçou um falso perfil de meu cliente. Além de ofendê-lo, baseou-se em fatos e argumentos distantes da realidade. Porém, com esperteza, deixou de levar aos vossos conhecimentos outros tantos indícios de não ter sido o meu cliente o autor daquele hediondo crime. Muito conveniente, pois quer dar uma satisfação à sociedade de Ashville; ora, não é desta forma que se faz justiça. Como disse o filósofo francês, Voltaire: “Mais vale arriscar-se a salvar um culpado do que a condenar um inocente.”

As palavras brotavam firmes na voz do experiente defensor. Esgrimindo sua tese em contraponto à acusação, prendia mais e mais a atenção dos jurados e do público.

O acusado morava numa cidade distante vinte quilômetros dali. Após as investigações preliminares, verificou-se que há muitos anos e com regular frequência, o réu vinha ao condado em busca de “diversão” com as prostitutas locais. Contava agora com cinquenta e sete anos. No dia de sua prisão, durante a madrugada, saiu embriagado do prostíbulo e passou a dirigir seu carro em arriscadas manobras de zigue-zague, quando, então, foi parado pela Polícia. Ao reconhecê-lo em razão do retrato falado, o policial sacou sua arma e o mandou deitar-se no chão. Enfim, finalmente estaria resolvido o crime.     

Por maior esforço que ele tenha feito para provar inocência, seus argumentos não foram suficientes para escapar da acusação criminal. A população precisava de um culpado.

O defensor, estabelecendo uma ordem cronológica para as suas alegações, enalteceu os méritos pessoais e condutas abonatórias de seu cliente, pois era um homem pacato e sem antecedentes, com família constituída e muito trabalhador. A seguir, passou à análise do “modus operandi” daquele crime.

Sem fazer qualquer comentário sobre o estupro e tomando em mãos o laudo de necropsia constante dos autos, preferiu demonstrar terem sido as facadas desferidas pelas costas, da direita para esquerda e, portanto, o autor do crime precisaria ser destro.

Algumas estocadas perfuraram o pulmão direito da vítima, outras um pouco mais abaixo, no rim, mas sempre do mesmo lado e com o mesmo ângulo de penetração. Ocorre que o acusado era canhoto; portanto – concluiu o defensor – não poderia ter sido ele; jamais teria tamanha habilidade com a mão trocada.

Nesse momento, o Dr. Scott solicitou autorização ao Juiz para a retirada das algemas do acusado a fim de demonstrar a sua afirmação. Apesar dos protestos do Dr. Morgan, o Juiz autorizou.

O advogado, então, colocou sobre uma pequena mesa em frente ao réu uma folha em branco e uma caneta, pedindo-lhe para escrever algumas palavras ditadas. Terminado o ditado, pediu-lhe para trocar de mão e escrever logo abaixo aquelas mesmas palavras. Feito isso, mostrou a folha escrita ao Juiz, ao Promotor e, por fim, fez circular entre os jurados a prova de suas afirmações.

– Senhores jurados, todos vocês viram o laudo de necropsia onde lá ficou evidenciada a trajetória correta das facadas. Agora, verificaram a falta de destreza motora de meu cliente com a mão direita. Ele é canhoto, não resta dúvida. Então, como poderia ser ele o assassino? Procurem escrever com a mão contrária e verifiquem o resultado.

Tão logo finalizada essa explanação, bradou furioso o Promotor:

– É mentira! Senhores jurados, o Dr. Scott, com a inteligência e astúcia que lhes são peculiares, procura confundi-los. Eu já previa esses argumentos. Porém, com muita modéstia, também sou astuto. Vejam o estudo científico que tenho em mãos e, desde logo, requeiro a Vossa Excelência autorização para a sua juntada aos autos. É o trabalho mais recente sobre lateralidade corporal e motricidade fina, elaborado pelo conceituado médico Dr. Johnson Smith, professor e pesquisador da Universidade de Harvard. Nesse estudo, está a prova definitiva da possibilidade de alguém ter distintas habilidades para um mesmo membro superior. Concluiu o Dr. Morgan, após inúmeras experiências realizadas, ser uma mesma pessoa incapaz de bem escrever com uma das mãos, mas com essa mesma mão pintar um belo quadro, martelar um prego na parede ou, ainda, tocar com esmero um violino. É científico, senhores jurados! Depende do hemisfério cerebral de cada indivíduo, dos seus comandos neurológicos, em síntese, da sua dominância lateral. Por favor, Dr. Scott, não me venha com tamanha baboseira! Mesmo assim, valeu a tentativa.

Ao desdenhar da tese do defensor, o talentoso acusador provocou risos na plateia.

– Contenha-se, Dr. Morgan; respeite o advogado de defesa e meça suas palavras no meu Tribunal!

Mesmo orgulhoso da sua grande estratégia ao “retirar da manga” aquele estudo científico, o Promotor desculpou-se com o magistrado e com o advogado de defesa. Era um vitorioso guerreiro dos tribunais e não poderia demonstrar arrogância naquele momento.

Ainda assim, apesar das reprimendas do Juiz, àquelas alturas o julgamento estava desequilibrado a favor da acusação e pouco havia a ser feito em defesa do acusado. Os jurados, já cansados do dia inteiro de debates, da análise das provas e das intermináveis leituras do processo, pareciam já estar com a decisão estampada em seus olhos. O réu pagaria com a pena de morte pelo crime cometido.

Foi então que o Juiz, antes de conduzir os jurados à sala secreta para a votação, e atendendo a uma mera obrigação formal, perguntou ao Promotor se haveria algo mais a acrescentar.

– Não, Excelência. Mas suplico: pela família desta pobre vítima, pela população do Condado de Aschville e, por fim, pelos Estados Unidos da América, condenem esse pedófilo estuprador e assassino à pena capital.

E nada mais precisou dizer.

Na sequência, Juiz proferiu a mesma pergunta ao advogado de defesa:

– Sim, Excelência. Tenho algo fundamental a acrescentar, porque acabei de tomar conhecimento de novas provas a favor de meu cliente. Invocando o princípio constitucional da ampla defesa e tomando como referência o conhecido caso GREGORY X MADISON, julgado nesse mesmo Tribunal em 1978, solicito que seja autorizada a oitiva de uma testemunha.

– Como assim, Dr. Scott? Sabemos que este crime não teve testemunhas presenciais. Explique-se ou indefiro o seu pedido – afirmou o Juiz com aparente irritação.

– Explicarei, Excelência. Já demonstrei ser o réu canhoto e, portanto, sem habilidades para desferir facadas usando a mão direita com tamanha precisão, mas parece que pouco adiantou. Agora, a testemunha que quero chamar a depor possui provas cabais que colocarão por terra a acusação. Portanto, rogo-lhe a confiança, Excelência; permita que essa testemunha de defesa seja ouvida e a justiça mais uma vez será feita em seu Tribunal.

O Juiz fitou atentamente o advogado por alguns instantes, parecendo refletir sobre o pedido e decidiu:

– Ok, Dr. Scott. Mas não me faça perder mais tempo. Que entre a sua testemunha.                                              

Com um leve sorriso no rosto, o defensor fez um sinal ao Oficial de Justiça para que conduzisse a testemunha até o “púlpito”, local onde ela deveria depor.

– Diga seu nome e endereço para registro, minha senhora – pediu o advogado de defesa.

Feito o registro de praxe, o Defensor questionou a testemunha:

– A senhora conhece o acusado e, se afirmativo, de onde o conhece?

– Sim, eu o conheço, doutor; sou “sua” prostituta há mais ou menos uns três anos aqui no condado.

Naquele instante, um burburinho se fez ouvir no Tribunal.

– Silêncio! Bradou novamente o Juiz, sem entender bem a estratégia da defesa, mas permitiu que ela continuasse o seu depoimento, perguntando-lhe se ela teria algo a ser dito que pudesse contribuir com o caso.

– Sim, seu Juiz.

Apontando para o réu, a testemunha disse que ele não poderia ter estuprado a menina.

– Ora, só faltava essa, Excelência! Assim gritou o agressivo Promotor.

– É até mesmo uma ofensa trazer ao seu Tribunal uma prostituta sem qualquer idoneidade moral; provavelmente dirá se recordar ter tido relações sexuais com o réu no exato momento do crime, há dois anos passados! Convenhamos! Uma memória impressionante dessa “ilustre senhora” prostituta! Qual será a média diária em que essa profissional do sexo desempenha as suas atividades?

O público e os jurados mais uma vez riram da situação.

– Doutor Morgan, chega de interrupções! O senhor está passando dos limites. Não posso admitir tamanho desrespeito à testemunha.

– Mas, Excelência…

– Cale-se, Dr., em meu Tribunal mando eu!

– Por favor, senhora, continue – determinou o magistrado.

Nesse exato momento, a testemunha entregou ao Juiz dois exames médicos feitos em épocas e por médicos distintos e disse:

– Seu Juiz, o exame mais antigo que o senhor tem em mãos foi feito há quatro anos e, o segundo, há apenas um ano. O meu cliente entregou-os para mim.

     Conseguindo a atenção de todos, continuou a testemunha:

– Não, doutor promotor, esse pobre homem não estava comigo no momento do crime. Mas esses exames médicos aí dão conta que ele é impotente de forma irreversível há muito tempo. Por isso gostava de ficar comigo; eu o compreendia, o respeitava, guardava seu triste segredo e realizava todas as suas outras fantasias sexuais.

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