Ninguém mais lembrava quando aquilo começara, mas era sabido que, nas madrugadas de quinta-feira, o Congresso Nacional não ficava vazio de verdade. Os vigias cochichavam que os corredores suspiravam sozinhos, que portas batiam sem vento e que o plenário, mesmo deserto, recebia plateias invisíveis. Severino, o mais antigo entre eles, repetia sempre a mesma sentença:
— Esses cabras voltam é pra discursar. Morto ou vivo, político não perde a mania.
Naquela noite, o painel eletrônico piscava sem parar um nome desconhecido: Deputado João da Sombra. Ninguém lembrava dele, mas lá estava, como se fosse líder de bancada. O presidente da sessão, que se orgulhava de não perder diária, resolveu brincar:
— Se tem deputado fantasma, que venha ao microfone!
O microfone ligou sozinho, e de dentro de uma luz esverdeada surgiu um homem de terno antiquado, gravata borboleta e olhos opacos. Ele pigarreou, sorriu e começou:
— Excelentíssimos colegas… trago aqui um projeto de lei que nunca pude ver aprovado em vida!
Um deputado cochilando lá no fundo bateu palmas por reflexo. O vulto se iluminou ainda mais. Outro, assustado, levantou-se e gritou:
— Questão de ordem, senhor presidente! Esse cidadão não consta do regimento!
— Questão de ordem deferida — respondeu o fantasma, tomando posse do martelo como se fosse dele.
Os assessores tentaram cortar o som, mas cada vez que desligavam o microfone, surgia outro púlpito no salão. Logo havia uma dúzia de tribunas, todas ocupadas por figuras pálidas que discursavam ao mesmo tempo. As palavras saíam como correntes geladas, sugando o fôlego dos vivos.
Nos corredores, papéis começaram a se redigir sozinhos, e uma comissão inteira apareceu reunida às pressas. O relator, um esqueleto de óculos escuros, leu um texto ininteligível e concluiu:
— Pela aprovação, senhor presidente.
O painel eletrônico disparou. Nomes de deputados mortos, cassados e desaparecidos brotavam em verde, registrando presença. Um estagiário empalideceu ao ver o número subir:
— Mas… mas são seiscentos e sessenta e seis votos!
— Ué, melhor do que faltar quórum, não é? — retrucou um deputado vivo, ajeitando a gravata com naturalidade.
Dois fantasmas começaram a brigar pelo microfone.
— Pela ordem! — Questão de ordem, Excelência!
Eles lançavam as palavras como se fossem feitiços, que ricocheteavam nas paredes e faziam os lustres tremerem. Um assessor desabou no chão ao ouvir a mais terrível delas:
— Requeiro votação simbólica!
No auge do tumulto, João da Sombra ergueu o dedo e anunciou:
— Está em pauta o Projeto de Lei 666/2025, que institui o Dia Nacional do Assombro e dá outras providências. Votação encerrada: aprovado por unanimidade!
A sala ficou em silêncio mortal. O fantasma sorriu e sumiu, deixando apenas sua voz ecoando:
— Aqui, excelência… ninguém perde mandato.
Na manhã seguinte, os jornais noticiaram apenas que a sessão se estendera até tarde, “dentro da normalidade”. Mas, curiosamente, o Dia Nacional do Assombro apareceu publicado no Diário Oficial, com relatoria desconhecida e assinaturas de deputados que, oficialmente, já não existiam.
E, desde então, quando a votação aperta demais, o painel sempre registra presenças extras de nomes que ninguém conhece — mas que ajudam a formar maioria.