Quando Maristela morreu, a morte foi uma confusão digna de novela das nove.
Não bastasse o infarto fulminante durante a aula de hidroginástica — justo no dia em que o professor novo, o tal Ramon, estreava uma sunga branca apertada —, ainda teve a cena do velório: o caixão cor-de-rosa, o padre que errou o nome três vezes (“descansa em paz, Marcelina… Marieta… Maristela!”) e a prima Neide pegando o terço de lembrança antes da hora.
Maristela, “já do outro lado”, observava tudo, irritadíssima!
— Mas é um vexame! E ainda por cima botaram minha foto com aquele penteado que me envelhece dez anos!
A morte, pelo visto, não tinha tirado o seu senso de vaidade.
O tempo “lá em cima” corre bem diferente do tempo “aqui embaixo”. Foi, então, que apareceu o espírito de um senhor magro, de túnica branca, e falou com a calma dos guias evoluídos:
— Minha filha, chegou sua hora de voltar. Mas parece que houve… um pequeno engano no setor de reencarnação.
— Engano?! Como assim?
— Pois é. O corpo que está disponível para retorno imediato é… bem, um corpo masculino.
— Masculino?! Eu? Com esta pele de pêssego e alma feminina refinada?
— É o que temos para hoje, minha filha. — E o espírito virou as páginas de um livro grosso. — Nome: Severino da Silva, 42 anos, pedreiro, morador de Juiz de Fora.
Maristela quis protestar, mas um clarão a engoliu antes que ela dissesse “creme antirrugas”.
Quando abriu os olhos, estava deitada numa cama dura, com cheiro de cimento.
Olhou para o lado: uma parede descascada, uma cueca pendurada no ventilador, e um ronco vindo do próprio peito.
— Meu Deus… que voz é essa? — pensou, e o som saiu grave, rouco.
Levantou-se tropeçando, foi até o espelho rachado do banheiro e viu um homem barbudo, com sobrancelhas grossas e… um bigode!
— Ai, meu pai celestial! Eu tô… eu tô… de bigode!
O choque foi tanto que desmaiou sobre o vaso sanitário.
Nos dias seguintes, Maristela — agora, Severino — tentava se adaptar à nova existência.
Na obra, os colegas estranharam.
— Ô, Severino, cê tá diferente. Até fala mais chique! — disse o Tião, o ajudante.
— É o autoconhecimento, Tião. Ando me conectando com meu lado… interior.
No almoço, em vez da marmita com feijão e torresmo, ele pedia salada e água com gás.
No boteco, trocou a cerveja por chá de camomila.
E certa noite, quando as colegas de obra comentaram sobre o futebol, Severino suspirou:
— Ah, mas vocês já notaram como o pôr do sol sobre o andaime é poético?
O silêncio foi tão profundo que até o rádio parou de tocar Zeca Pagodinho.
Com o tempo, Maristela/ Severino, ou vice-versa, começou a ver graça na situação.
Usava o corpo de Severino para visitar antigos desafetos. Foi até o salão de beleza onde trabalhava e disse à ex-colega fofoqueira:
— Sabe que sonhei com a alma de uma tal Maristela? Uma mulher maravilhosa, mas incompreendida.
— Ah, coitada dela! — respondeu a colega. — Dizem que morreu e nem no caixão ficou bonita.
— Mentira! — berrou Severino, já tomado de raiva. — Ela estava um arraso! O vestido combinava com o esmalte, sua língua venenosa!
Saiu porta afora, furioso(a), mas estranhamente leve.
No mundo espiritual, o seu guia observava a confusão e coçava o queixo etéreo.
— Acho que ela tá pegando gosto, hein?
E realmente, depois de alguns meses, Maristela aprendeu a viver naquele corpo emprestado. Abriu um pequeno negócio de reformas e decoração (“Reformas com Alma”), pintava paredes, ouvindo boleros e dava conselhos amorosos aos colegas como se fosse uma tia sábia.
Certa noite, ao olhar o céu estrelado, sentiu uma paz estranha.
— Sabe, acho que finalmente tô entendendo… o que é viver em outro corpo. Talvez alma não tenha gênero, nem idade.
Do alto, o guia sorriu.
— Viu? No fim, todo aprendizado é uma obra em andamento.
Maristela sorriu também, ajeitando o bigode no espelho.
— Só espero que, na próxima vez, me mandem de volta com cílios postiços e um batom decente.
E foi dormir tranquila, pronta pra mais um dia de pedreiro, filósofo e mulher renascida.
Já fazia quase um ano desde que Maristela acordara no corpo de Severino da Silva, pedreiro, bigodudo e de um coração cada vez mais confuso.
A vida nova ia bem: a clientela da “Reformas com Alma” crescia, os vizinhos a respeitavam, e até o Tião, que antes achava o patrão meio esquisito, agora dizia:
— O Severino é diferente… tem um negócio nele… uma doçura, sabe?
Maristela fingia que não ouvia, mas por dentro suspirava.
Doçura?
Tinha. Confusão? Também.
Porque o mundo espiritual, com suas burocracias cósmicas, nunca tinha lhe explicado o que fazer quando um corpo masculino começava a sentir o coração bater por uma mulher viva — e solteira.
Foi numa terça-feira que ela — ou ele, dependendo do ponto de vista — conheceu Lívia, arquiteta recém-formada, que contratou os serviços de Severino para reformar o ateliê.
Lívia era prática, falava rápido e sempre tinha o cabelo solto e esvoaçante, propositalmente bagunçado.
Nos primeiros dias, Severino achou que era só admiração profissional.
No décimo dia, percebeu que sorria demais quando ela chegava.
No décimo quinto, já passava perfume antes da obra.
Mas o dilema era outro: quem estava apaixonado?
O corpo de Severino? Ou a alma de Maristela, ainda sonhadora e vaidosa, disfarçada sob o bigode?
— Severino, essa parede aqui… você acha que combina melhor com o azul-claro ou com o verde-musgo? — perguntou Lívia, segurando as amostras.
— Acho que o azul… tem mais alma.
Ela sorriu, surpresa.
— Engraçado você falar assim. Quase ninguém usa a palavra “alma” numa obra.
Ele quis responder que tinha motivos de sobra pra isso, mas só deu um sorrisinho torto.
— É o jeito de ver o mundo, sabe? Às vezes, o que muda não é a cor da parede… é o olhar de quem observa.
Lívia ficou em silêncio.
Talvez tenha entendido. Talvez não.
As semanas seguintes foram uma mistura de romance contido e confusão metafísica.
Severino levava flores disfarçadas de presente da obra (“achei esse vaso e pensei que combinava com o ambiente”), e Lívia trazia café e bolo de fubá “porque um pedreiro precisa de energia”.
Às vezes, Maristela queria contar tudo. Dizer:
“Eu morri, sabe? Mas continuo aqui, aprendendo a ser outro, e você é a primeira pessoa que me faz esquecer quem eu fui.”
Mas o corpo de Severino só conseguia sorrir, calado.
Numa tarde, a reforma terminou.
Lívia ficou de pé no meio do ateliê, emocionada.
— Ficou lindo, Severino. Parece que o lugar tem… vida.
Ele assentiu.
— Toda casa tem alma, se a gente souber ouvir as paredes.
Ela se aproximou, devagar.
O cheiro de tinta fresca se misturava ao perfume dela.
Por um instante, Severino sentiu o universo inteiro suspenso — como se o tempo respirasse.
Lívia tocou a mão dele.
— Você é diferente, sabia?
— É… dizem que eu já fui melhor em outra vida.
Ela riu.
— Então espero te encontrar na próxima.
E saiu, deixando o eco da risada e o barulho leve dos passos.
Naquela noite, Severino (ou Maristela, ou ambos) olhou para o espelho.
Viu o rosto cansado, o bigode, mas também um brilho novo nos olhos.
No reflexo, por um segundo, pareceu enxergar o contorno suave de uma mulher sorrindo atrás da imagem.
Do outro lado do vidro, o guia espiritual observava.
— Parece que ela aprendeu … ou quase.
Uma brisa soprou pela janela.
Severino sorriu, murmurando:
— Será que o amor também reencarna?
O ventilador girou devagar, o espelho tremeu, e por um instante — só um instante — o bigode sumiu.
Depois, o quarto ficou em silêncio.
Os meses seguintes foram estranhos.
Severino continuava tocando suas obras, agora com fama de pedreiro filosófico — tinha cliente que o chamava só pra ouvir conselhos sobre a vida enquanto ele assentava azulejo.
Mas à noite, algo começou a mudar.
O corpo ficava leve demais.
Às vezes, ele acordava no meio da madrugada e via o próprio corpo dormindo.
— Eita… acho que tô virando alma de novo — murmurava, tentando voltar pra dentro como quem tenta vestir uma roupa apertada.
Na primeira vez, foi pânico.
Na terceira, resignação.
Na quinta, um certo alívio.
Lívia, a arquiteta, continuava aparecendo.
Primeiro, pra tomar café. Depois, pra “dar uma olhada num orçamento”.
Mas agora, quando ela o abraçava, Severino sentia como se o ar passasse por dentro dele — e uma parte de si ficasse suspensa, como poeira no sol.
— Tá pálido, Severino. Você devia ir ao médico.
— Já fui. Ele disse que tô ótimo. Só não me pesou… acho que tô cada dia mais leve.
Ela riu, achando graça. Ele também. Mas o riso ficou preso entre eles, sem saber se era de amor ou de despedida.
E o seu corpo pareceu sumir.
Quando percebeu, ele não sentia o toque dela mais — apenas o calor da lembrança.
No dia seguinte, encontraram o corpo de Severino adormecido, tranquilo, como quem tivesse tirado um cochilo entre obras.
Ninguém notou nada estranho, exceto o Tião, que jurou ter ouvido naquela madrugada uma risada feminina vinda da sala.
Lívia chorou no enterro.
Às vezes, sentada em seu ateliê, sentia uma brisa suave, com cheiro de perfume e poeira de cimento.
Do outro lado, no lugar onde o tempo é diferente, o guia espiritual sorria.
— Então, minha filha… aprendeu o que era viver no corpo de outro?
Maristela, agora sem forma, respondeu com leve ironia:
— Aprendi. O problema é que agora tô sem corpo nenhum e com saudade dos dois.
— Ah, mas isso passa. Amor assim não se perde, só se transforma.
E enquanto ela se desfazia em luz, jurou ouvir uma voz distante — feminina, talvez a dela mesma — murmurando:
“Me espera na próxima reforma.”



Excelente !!
Machado tu tem certeza de que tu e o escritor? Acho que tu psicografou esse conto!!!
Eu trocaria o titulo para O Pedreiro Filosofico. Rsrs
Meu amigo Sampaio, este é o segundo conto com viés “espírita” que escrevo. É muito divertido…. Kkkk