ENTRE AS LINHAS DA SENTENÇA

O corredor do Forum, àquela hora, era um túnel de ecos. Cada passo de Camila reverberava entre as paredes de mármore, como se a culpa tivesse som. Carregava nos braços uma pilha de processos, mas era o coração que pesava mais — um coração que, nas últimas semanas, deixara de bater só pelo Direito.

O gabinete do Juiz Augusto ficava no fim do corredor, atrás de uma porta larga, silenciosa como segredo guardado demais. O relógio marcava 19h12 quando ela empurrou a maçaneta e entrou.

Ele estava lá, apenas de camisa branca, mangas dobradas e a gravata pendendo como se tivesse acabado de se despir de uma solenidade. Camila sentiu o estômago se contrair — não era a primeira vez que o via assim, mas toda vez parecia ser.

— Atrasada — ele disse, sem levantar os olhos dos papéis.

— Eu… revisei as minutas de novo. — A voz saiu baixa, contida.

Augusto fechou a pasta devagar. O silêncio entre eles nunca era vazio; era uma corda esticada, fina, prestes a romper. Aproximou-se com passos lentos, cada um deles queimando as certezas que, em outros horários, pareciam inabaláveis.

Camila sabia o que estava fazendo ali. Sabia também o que deveria estar fazendo — e eram duas coisas diferentes. O corpo queria avançar; a consciência, recuar. E era nesse espaço estreito entre os dois impulsos que ela vinha se perdendo, dia após dia.

Ele parou atrás dela, perto demais. O calor do seu corpo era quase uma confissão.

— Você pensa muito — murmurou junto ao seu pescoço.

Camila fechou os olhos. A pele arrepiou. Quis dar um passo à frente, fugir — mas ficou. Porque parte dela queria ficar. E essa era a parte mais perigosa.

— E você… não pensa? — perguntou, com a voz trêmula, como se estivesse falando mais consigo mesma do que com ele.

Augusto encostou as mãos em sua cintura. Um toque calmo, firme. Não havia violência naquele gesto — havia escolha. Escolhas são sempre mais assustadoras que impulsos.

Ele também sentia. Sentia o peso de uma vida construída sobre reputações, títulos, prêmios e decisões inquestionáveis. Sentia a idade, o nome, o cargo. Sentia — com nitidez incômoda — que tudo aquilo podia ruir não por um escândalo, mas por um olhar. Aquele olhar.

— Penso — respondeu, por fim. — Penso… o tempo inteiro.

As palavras pairaram entre eles, mais intensas do que qualquer toque.

Camila virou o rosto devagar, encontrando os olhos dele. Não havia inocência nem malícia, só dois abismos tentando se reconhecer. Era desejo, sim — mas misturado com medo, culpa e uma estranha sensação de inevitabilidade.

O toque dele subiu pelas costas, e a respiração dela vacilou. O relógio marcava 19h23. O tempo, ali dentro, parecia suspenso — como se a lei, a moral e o mundo ficassem do lado de fora da porta pesada. Um beijo ardente tornou-se necessário.

Então, um telefone tocou no corredor. O som cortou o ar como uma sentença.

Eles recuaram, quase ao mesmo tempo. Ele ajeitou a gravata. Ela recompôs o cabelo. A gravidade retornou ao ambiente — não porque tivesse ido embora, mas porque sempre estivera ali, à espreita.

— A audiência de amanhã será longa — ele disse, com a voz retomando a neutralidade dos autos.

Camila assentiu. Mas a neutralidade não cabia mais dentro dela. Ao sair, o corredor pareceu mais frio. Ou talvez fosse só o contraste com o que ela deixara lá dentro: um pedaço de si mesma, pendurado entre desejo e consciência.

No gabinete, Augusto permaneceu imóvel, ainda com o calor dela gravado na sua  pele. Ele pensou — de novo. Pensou no cargo, na história, na linha tênue que separa o que se sente do que se permite. O relógio seguiu marcando os segundos, indiferente. E entre um tic tac e outro, ficou o que nenhum processo poderia registrar: dois corpos presos em silêncios diferentes, mas igualmente pesados

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