ENTRE PÉTALAS E SILÊNCIOS

O relógio da recepção marcava sete e meia da manhã quando Dona Marta empurrou a porta de vidro da academia. O ar condicionado jogava um vento frio demais para uma manhã de outono, e, ainda assim, ela sentiu um calor repentino subir-lhe pelas faces. Lúcia já estava lá — como sempre.

Perto do espelho, alongava-se com uma lentidão que beirava a coreografia. A calça justa marcava os contornos dos quadris firmes para a idade, e a blusa lilás deixava à mostra parte do colo — um decote contido, mas impossível de ser ignorado. Marta prendeu a respiração por um instante, antes de disfarçar, ajeitando a toalha no ombro.

— Bom dia — disse, tentando manter a voz neutra.

— Bom dia, Marta — respondeu Lúcia, com aquele sorriso de canto que parecia sempre esconder um pensamento a mais.

Os treinos em dupla haviam se tornado rotina nas últimas semanas, um pretexto silencioso para se aproximarem. Ninguém comentava. Nem precisavam. As duas sabiam quando estavam próximas demais — e também sabiam que nenhuma das duas recuava.

Durante os exercícios com elástico, Marta sentiu a tensão do material puxando seus braços, e, no reflexo do espelho, o olhar de Lúcia acompanhando cada movimento. Foi ali que percebeu que não era apenas ela quem olhava.

— Está ficando forte — murmurou Lúcia, a voz baixa e rouca, como se fosse um segredo compartilhado.

O toque veio como um acidente: as mãos das duas se encontraram quando trocaram os elásticos. Não houve recuo. Os dedos de Lúcia permaneceram sobre os dela por um segundo a mais. Tempo suficiente para Marta sentir o calor atravessá-la como corrente elétrica.

Depois, lado a lado na esteira, o silêncio era quase palpável. A respiração das duas era ritmada, os corpos suados, o som dos passos marcando um compasso íntimo. Lúcia passou a toalha pela nuca, e Marta a observou; o pescoço exposto, a curva do queixo, o suor descendo devagar.

— A gente devia… — começou Marta, sem saber ao certo onde queria chegar.

Lúcia virou o rosto, e os olhos das duas se encontraram. Não havia constrangimento ali. Só uma tensão tranquila, densa, como se o mundo estivesse suspenso num fio invisível.

No vestiário, sentaram-se lado a lado no banco de madeira. A toalha de Marta caiu no chão, e, ao abaixar-se para pegá-la, seu ombro roçou na perna de Lúcia. O toque foi pequeno, mas latejou fundo, feito um sussurro na pele.

— Caminhada amanhã? — perguntou Lúcia, amarrando os cadarços devagar demais, como quem testa os limites do tempo.

Marta respirou fundo. Sabia que aquele convite carregava algo que nenhuma das duas nomeava em voz alta.

— Quero — respondeu, e a palavra saiu baixa, quase um arrepio.

Do lado de fora, caminharam lado a lado até a esquina. Nenhum gesto explícito, nenhuma palavra além do necessário. Mas a distância entre seus corpos era tão pequena que bastaria um desvio de passo para que se tocassem.

Na faixa de pedestres, ficaram paradas mesmo com o sinal aberto. Lúcia virou-se de leve, e Marta sentiu aquele olhar pousar sobre ela como um toque — quente, direto, inevitável.

E então, uma brisa mais forte soprou entre as duas, fazendo a blusa lilás de Lúcia tocar a mão de Marta. Nenhuma recuou.

O sinal fechou. Elas atravessaram.

O sol de fim de manhã filtrava-se pelas copas das árvores do Parque das Palmeiras, espalhando manchas douradas sobre o caminho de terra batida. O cheiro úmido da grama recém-cortada se misturava ao perfume suave das flores silvestres. Marta chegou alguns minutos antes do combinado. Queria fingir que não, mas esperava Lúcia com uma inquietação que não sentia havia décadas — aquela ansiedade quente que habita os segundos antes de um toque.

Lucia vinha pela alameda principal. Passos firmes, lenço vermelho amarrado ao pescoço, cabelos brancos soltos. Havia algo provocante no modo como Lúcia se aproximava: nada explícito, apenas uma confiança silenciosa, uma leveza que parecia dizer eu sei que você está me esperando.

— Pensei que fosse me deixar plantada — disse Marta, tentando esconder a voz trêmula.

— Eu não costumo deixar passar o que me interessa — respondeu Lúcia, com um meio sorriso que a desarmou por inteiro.

Começaram a caminhar lado a lado, em silêncio. O vento leve fazia com que, de tempos em tempos, seus braços se roçassem — primeiro de leve, depois com mais frequência. Nenhuma delas se afastava.

— Você sempre vem aqui? — perguntou Marta, mais para ouvir a voz de Lúcia do que pela resposta.

— Nem sempre. Hoje… foi diferente. — O olhar de Lúcia pousou sobre ela, firme, sem pressa.

Aquela pausa dizia mais que qualquer frase. Era o mesmo silêncio denso da academia, mas agora, sem espelhos, sem música ambiente — só as duas, cercadas por árvores e vento.

Pararam num banco de madeira debaixo de um ipê amarelo. O chão estava coberto de pétalas. Lúcia sentou primeiro e ajeitou a saia sobre os joelhos. Marta sentou ao lado, deixando entre elas um espaço estreito — estreito o bastante para que a respiração de uma roçasse a da outra.

— Está nervosa? — Lúcia perguntou, sem rodeios.

— Um pouco — Marta sorriu, baixando os olhos. — Faz muito tempo que… não me sinto assim.

Lúcia inclinou a cabeça, aproximando-se devagar. O perfume de jasmim misturou-se ao ar úmido. O tempo pareceu se dilatar, alongando cada segundo. O toque veio primeiro nos dedos — leve, hesitante — e depois ficou. As mãos entrelaçadas sem pressa.

O calor das palmas, a pele enrugada, o arrepio que subiu pelos braços. Nenhuma palavra seria suficiente para descrever o que cabia naquele gesto contido.

— A gente ainda tem tempo — disse Lúcia, num sussurro rouco, carregado de sentidos.

Marta não respondeu. Apenas virou o rosto para o lado, encontrando aqueles olhos. Não havia urgência. Só um desejo maduro, cheio de pausas e intenções.

Ao longe, uma criança soltava uma pipa. O vento levantou mais pétalas amarelas, que rodopiaram no ar, pousando aos pés das duas.

Ficaram ali — de mãos dadas, respiração próxima, sem qualquer palavra, corações acelerados num ritmo que parecia antigo e novo ao mesmo tempo.

Nenhuma delas sabia o que viria depois. Talvez um café, talvez um beijo, talvez só o silêncio compartilhado. Mas naquele instante, nada mais era necessário.

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