O asfalto cintilava sob o sol da tarde, um tapete quente que cortava o cerrado em duas metades. Ele vinha em velocidade cruzeiro, montado em sua velha Harley Fat Bob. Barba por fazer, jaqueta surrada, olhos escondidos sob visor do capacete e botas que apontavam para milhares de quilômetros já rodados.
Ela, um pouco mais a frente, em sua Honda NX 750, estalando de tão nova, corpo inclinado pra frente, conjunto de jaqueta e calça de couro também novos, e cabelos presos por uma fita azul que escapava ao vento.
O encontro aconteceu numa curva suave, dessas que parecem desenhadas para desacelerar o tempo. Ele virou o pulso um pouco mais até emparelhar lado a lado com ela por alguns segundos.
Ele a olhou primeiro. O reflexo do sol na carenagem da moto dela o cegou por um instante. Ainda assim, permaneceu lado a lado durante aquela curva. Ela também o notou com sua postura firme, o ronco grave e inconfundível do motor, o jeito de quem carrega distância demais nas costas. Cruzar olhares foi inevitável. E breve.
Alguns quilômetros depois, encontraram-se de novo — agora num posto de beira de estrada, entre o cheiro de gasolina e poeira.
Ele abastecia, ela tirava o capacete. O vento fez a fita azul cair e seu cabelo ruivo se soltar e voar. Ele sorriu.
— Estrada longa? — perguntou, apoiando o cotovelo no tanque. O bastante pra não ter pressa — respondeu ela, com um meio sorriso.
O silêncio entre os dois não pesou; ao contrário, parecia prometer alguma coisa.
Ela pegou uma garrafa d’água, molhou os lábios.
Ele observou — não com descaso, mas com curiosidade, como quem tenta decifrar um idioma que já entendeu uma vez, há muito tempo.
Seguiram juntos pela estrada, mas sem combinar. Apenas deixaram que o destino encaixasse o ritmo de suas motos.
O vento batia nos corpos, e o som dos motores criava uma espécie de diálogo. Às vezes, ela acelerava um pouco, só pra provocá-lo. Ele respondia com o mesmo jogo.
Quando o sol começou a cair, pararam num mirante solitário. Lá embaixo, o vale dourado, o ar morno, o mundo inteiro suspenso num instante. Ela encostou a moto ao lado da dele, retirou o capacete devagar, deixando o vento soltar seus fios rebeldes.
Ele fez o mesmo, aproximando-se. O silêncio voou — agora mais denso, cheio de algo que não precisava ser dito.
Ele estendeu a mão, tirando um tanto de poeira do ombro dela. Ela não recuou. O toque foi leve, quase nada, mas suficiente. Não houve pressa. Só o som do vento, o cheiro de gasolina, pele morna e a certeza de que eles não se cruzaram por acaso.
Quando o sol sumiu por completo, os dois montaram de novo nas suas motos e seguiram. Não juntos, nem separados. Apenas na mesma direção.
A noite chegou sem pressa, costurando o céu com fios de prata. As motos cortavam a escuridão em linhas paralelas, faróis dançando nas curvas. Não havia qualquer combinação, mas, de algum modo, os dois sabiam para onde ir. Ele parou primeiro, num pequeno vilarejo esquecido entre serras.
O bar tinha luz amarelada e música velha, dessas que falam de amores que não deram certo. Pediu um café. Quando ouviu o motor da moto dela, não se virou de imediato. Apenas sorriu.
Ela entrou devagar, o zíper da jaqueta semiaberto, revelando a pele tocada pelo sol. Caminhou até o balcão.
— Me vê o mesmo que ele — disse ao atendente, sem olhar para ele.
O silêncio entre eles não era vazio: era tecido de expectativa. Cada gesto — o levantar da xícara, o toque dos dedos no balcão, o cruzar das pernas — tinha peso e intenção.
— Achei que você tinha tomado outro rumo — ele disse, por fim.
— Achei que você não era de repetir caminho — respondeu, e o olhar dela sustentou o dele com uma calma provocante.
Lá fora, a poeira da estrada estava agitada. Dentro, o ar parecia imóvel. O dono do bar apagou as luzes do fundo, como quem entende o que está por vir. Ela se levantou primeiro.
— Há uma pousada logo adiante, perto do rio — disse, sem convidar, mas também sem se despedir.
Ele esperou alguns segundos antes de sair. O ronco das motos voltou a preencher o mundo. Seguiram em silêncio, a lua acompanhando tudo acima deles.
A pousada era simples, de madeira e cheiro de lenha. Ela entrou no quarto e deixou a porta entreaberta. Ele estacionou, tirou o capacete e ficou ali, respirando o frio da madrugada. Não houve palavras.
Só o ranger leve da porta sendo empurrada, o som de passos lentos sobre o piso de madeira, e o instante em que o tempo pareceu parar. Do lado de fora, a lua refletia no rio — branca, quieta, cúmplice.
O amanhecer chegou devagar, filtrando-se pelas frestas da janela. O canto distante de um galo misturava-se ao murmúrio do rio. O mundo parecia suspenso, como se o tempo ainda não tivesse decidido começar de novo. Ela acordou primeiro.
Ficou de lado, observando o contorno dele à meia-luz — o braço jogado sobre o lençol, o peito subindo e descendo num ritmo calmo.
Havia algo de sereno naquele corpo que, horas antes, parecia feito de pura estrada. Levantou-se sem ruído, enrolou-se no lençol e foi até a varanda. O ar da manhã trazia cheiro de terra úmida e folhas amassadas. As duas motos estavam lá fora, cobertas de orvalho.
Por um instante, pensou em seguir sozinha, antes que ele acordasse. Mas não foi. Ele despertou pouco depois, silencioso, e a encontrou encostada no parapeito, o lençol escorrendo pelos ombros. Não disse nada. Apenas se aproximou, com aquele mesmo jeito de quem entende o valor do silêncio.
— A estrada continua — ela murmurou, sem se virar.
— Sempre — respondeu ele. — Mas ninguém disse que é preciso ir sozinho.
Ela olhou por sobre o ombro, e o olhar que trocaram revelara um bonito consentimento. Tomaram café juntos, sem urgência.
Falavam pouco, e quando o faziam, eram palavras simples: direções, distâncias, o tempo que podia mudar. Mas o que realmente importava era o que estava nas pausas, nas respirações que se encaixavam.
Quando o sol começou a subir, ela ajeitou a fita azul no cabelo. Ele passou os dedos por um fio rebelde, apenas um segundo, antes de vestir a jaqueta. No portão da pousada, as motos os esperavam alinhadas, cobertas de brilho novo. Ela montou primeiro; ele, logo depois. Nenhum dos dois perguntou qual seria o destino. Apenas partiram, deixando para trás o quarto, o rio, o lençol esquecido na varanda e levando consigo algo que talvez não tivesse nome.
O vento, mais uma vez, cuidou do resto. A estrada seguia em frente, reta por quilômetros, até desaparecer num tremor de calor e luz. O sol do meio-dia queimava o horizonte, e o asfalto exalava aquele cheiro de pedra viva.
Rodavam — ele um pouco à frente, ela logo atrás, mantendo a distância justa entre o acaso e o querer. De vez em quando, um olhar rápido pelo espelho confirmava que o outro ainda estava ali. Bastava isso.
Pararam num ponto alto, onde a estrada se bifurcava: uma seguia rumo ao sul, outra se perdia em direção às montanhas. O vento trazia poeira, o som longínquo de um caminhão, e um silêncio que parecia mais denso que o próprio calor. Ela tirou o capacete, o rosto meio avermelhado pelo sol.
— Acho que é aqui que as rotas se dividem — disse, com um meio sorriso que disfarçava o incômodo da despedida.
Ele assentiu, olhando o horizonte.
— Toda estrada se divide em algum ponto. O difícil é saber qual lado escolher. Por um instante, ninguém se moveu.
Havia no ar algo que não cabia em palavras: uma lembrança que ainda não tinha virado passado. Ela se aproximou. Tocou o tanque da moto dele com a ponta dos dedos, traçando distraidamente um risco de poeira.
— Se eu virar para o sul, talvez chegue ao mar.
— Se eu seguir para as montanhas, talvez encontre neve — respondeu.
— Ou, talvez, a gente se encontre no meio do caminho — disse ela, num tom leve, mas com os olhos firmes nos dele. Ele sorriu. Um sorriso curto, quase imperceptível — desses que se guardam pra lembrar depois.
Montaram nas motos. Ela foi a primeira a partir, o som do motor crescendo até virar distância.
Ele ficou por um momento, observando o rastro que ela deixara. Então, girou a chave. O motor respondeu com um rugido grave. E, quando o vento levou o último traço do cheiro dela, não se soube ao certo se ele a havia seguido ou tomado o outro caminho. Apenas a estrada permaneceu ali, aberta, esperando, esperando…


