JOGO DE VÁRZEA E OUTRAS COISAS MAIS

          O sol batia forte no campinho de terra do Santa Helena, mas ninguém parecia se importar. Era final do campeonato de várzea. Do lado esquerdo, o Unidos do Beco, com uniformes que tinham passado mais por mangueira de quintal do que por máquina de lavar. Do lado direito, o Canela Seca Futebol Clube, de coletes emprestados da escolinha do sobrinho do técnico.

A torcida estava colada na beira do campo — literalmente — com cadeiras de plástico afundando na lama, caixas de isopor suando cerveja quente e um tio que gritava “Joga no Pelé!” mesmo sem existir ninguém com esse nome.

No centro do campo, Tonhão — capitão do Unidos — batia no peito e berrava como general de guerra:

“Hoje ninguém passa por mim!”

Do lado dele, Nenê, franzino e calado, ajeitava a chuteira furada. Jogava por um único motivo: o pai estava na arquibancada, olhando em silêncio. O velho nunca dizia nada, mas um olhar dele valia mais do que mil palavras. Nenê sentia cada centímetro desse silêncio.

O juiz, seu Norival, com um apito que mais parecia brinquedo de feira, deu início ao jogo. O primeiro passe foi torto, o segundo caiu num buraco e o terceiro… foi interceptado por um cachorro.

“Lá vem o Peludo de novo!” — gritou alguém da torcida.

O cachorro invadiu o campo, roubou a bola e saiu correndo como craque de Copa do Mundo. Tonhão tentou marcar, escorregou na poeira e caiu de bunda. A torcida foi abaixo.

“Se botar esse cachorro no ataque, a gente sobe de divisão!” — gritou um tiozinho, gargalhando com um copo de pinga.

Nenê observava, quieto. Não ria. O cachorro parecia mais leve que ele — mais livre, como quem não precisava provar nada pra ninguém.

          O jogo seguiu torto, nervoso, cheio de carrinhos imprecisos e palavrões criativos. A cada erro, Tonhão dava um berro:

“Acorda, time!”

E a cada berro, Nenê sentia a barriga mais apertada.

           No meio do primeiro tempo, Tonhão trombou com dois zagueiros e caiu como quem tivesse levado um tiro.

“Falta, juiz!” — berrava.

— “Segue o jogo,” respondeu seu Norival, coçando o bigode com desinteresse.

“Segue o jogo? Eu quase morri!”

— “Quase não é morrer”, disse SEU Norival.

A torcida riu. Nenê, não. Ele olhou para o pai na arquibancada. Nada. O homem só cruzou os braços, como quem espera algo que talvez não venha.

Aos 39 minutos do segundo tempo, Nenê recebeu a bola livre, sem marcação e era só chutar. Um silêncio estranho tomou conta da várzea. Até o Peludo parou. Tonhão gritou:

“Agora, moleque!”

E foi aí que Nenê hesitou. Um segundo. Só um segundo. O zagueiro chegou, tomou a bola, chutou pro mato. A torcida explodiu:

“Ah, Nenê… até o cachorro fazia esse gol!”

Risos. Gargalhadas. E um silêncio pesado dentro dele.

O pai continuava de braços cruzados.

O jogo parecia destinado ao 0 x 0 até que, aos 47 do segundo tempo, Tonhão arriscou um chute tão torto a bola iria parar na rua, não fosse o Peludo saltar e desviar a bola pra dentro do gol com o focinho.

Seu Norival levantou os braços:

“Gol válido! O cachorro é neutro!”

Goooolllll !!!!!!!  Gritos, Euforias.  Gente pulando no alambrado, fogos que ninguém sabia de onde tinham vindo.

O Canela Seca protestava, mas ninguém ouvia. Dona Rita já dançava com a bandeira, o tio da pinga tentava entrevistar o cachorro com uma garrafa no lugar de microfone e Tonhão berrava como quem havia ganho a Libertadores.

Nenê ficou parado no meio do campo. Olhava a rede balançando, mas não se movia. O gol que não fez doía demais!

Tonhão veio abraçar todo mundo — menos ele. Não foi por maldade; foi automático. Nenê era praticamente invisível.

A torcida já planejava o churrasco. Zé Galinha, técnico derrotado, prometia revanche:

“Ano que vem esse cachorro vai jogar do nosso lado!”

E Peludo, deitado dentro do gol, abanava o rabo como quem sabia que nada daquilo importava.

Nenê caminhou devagar até a marca do pênalti. Olhou pro Peludo dentro do gol e soltou um risinho curto, nervoso — desses que não têm graça nenhuma.

“Até um cachorro é melhor que eu,” murmurou para si mesmo.

Olhou pra arquibancada. O pai continuava parado. Mas, pela primeira vez, levantou o queixo e olhou em sua direção — pequeno gesto, mas enorme para Nenê que respirou fundo.

Atrás dele, a festa seguia. Fogos, cerveja, música alta. Mas Nenê não se virou.

O juiz, seu Norival, conversava com Tonhão, alguém já recolhia apostas pro próximo jogo e Peludo dormia dentro do gol, indiferente a todas as tragédias humanas.

Nenê ficou ali, sozinho no meio da várzea, como quem entende que há jogos que não acabam no apito final.

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