São Bartolomeu era uma cidadezinha miúda, escondida no pé da serra mineira da Mantiqueira, onde a vida corria devagar quase parando. O sino da Matriz dava conta das horas e durante o dia o povo se revezava na venda do Seu Aristeu pra falar de nada e de tudo. À noite só havia barulho de grilo, cachorro latindo e, quando muito, um violão chorando na varanda de alguém.
Foi num dia de segunda-feira, logo cedo e depois da missa, que apareceu um cabra diferente. Vinha sozinho, a pé, chapéu caído no rosto e um bornal surrado no ombro.
— Ocê reparou naquele homi, Mundica? — cochichou uma comadre na porta da igreja.
— Reparei, uai… nunca vi mais gordo. Tem cara de quem carrega história nas costas — respondeu Mundica, já se benzendo.
O povo ficou logo com a pulga atrás da orelha. O sujeito não falava quase nada, só bebia devagarinho na venda, como quem conta os goles. E, quando falava, era sempre curto, seco, sem riso.
Mas lugar pequeno é assim mesmo: basta um fiapo de novidade que já vira assunto. Primeiro foi no truco onde ele quis bater carta de um jeito e os rapazes não gostaram. A turma do deixa disso teve que separar senão dava facada. Depois, na beira do rio; arrumou briga por causa de um anzol, acredita? Cada causo aumentava o mistério em volta dele.
O Delegado Honório, que era homem respeitado, bigode grosso e fama de não levar desaforo pra casa, resolveu convocar o sujeito pra conversa na delegacia.
— Escuta aqui, cabra. Ocê num é daqui, mas aqui tem lei, ouviu? — disse o Delegado Honório, de braços cruzados e um palheiro fumegante pendurado nos beiços.
— Lei tem em todo canto, seu Delegado — respondeu o homem, seco que nem pau de lenha.
— Então trate de respeitá. Aqui num vai sê diferente não.
— Respeito quando me respeitam.
Dali pra frente, só se ouviu voz aumentando, cadeira arrastando. A rua ficou em silêncio, todo mundo reparando na conversação. Aí veio o estampido. Um tiro só que parecia ecoar pela serra inteira.
Quando correram pra ver, o Delegado Honório tava estirado no chão e a mão encostada no coldre, como quem tivesse tentado sacar a arma, mas não teve tempo. O forasteiro saiu pela porta como quem sai de uma prosa qualquer: calmo, firme, com o revolver ainda na mão.
— Nossa Senhora Aparecida… — murmurou uma mulher, tapando a boca com o avental.
— Vixe Maria… — completou um velho, tirando o chapéu.
E ninguém se mexeu. O homem montou num cavalo que estava amarrado por ali, e tocou pela estrada, levantando poeira vermelha.
Delegado Honório foi velado na Matriz, casa cheia, pranto baixo. O povo falava em cochicho: uns diziam que o Delegado quis prender o sujeito à força, outros juravam que havia segredo antigo naquela conversa e ainda tinha quem afirmasse que o tal homem já era conhecido noutras cidades, mas ninguém mostrava prova.
Nunca mais se ouviu falar do forasteiro. Mas em noite de lua cheia, há quem jure escutar trote de cavalo descendo a ladeira de pedra. Outros dizem que já viram pegada fresca perto do cemitério, sempre depois das missas de sétimo dia que ainda se reza pra alma de Honório.
E São Bartolomeu, desde então, carrega um silêncio diferente, pesado, como se o homem de fora ainda rondasse as esquinas.
