O GRANDE ESPETÁCULO DA COZINHA

PARTE 1

A cozinha do La Fine Fleur brilhava como um templo de aço inox, mas naquela noite de gala, mais parecia picadeiro de circo. O chef Arnaldo, um francês de Goiás que jurava ter sotaque parisiense, desfilava pelo espaço como maestro regendo uma orquestra invisível.

Attention, messieurs et madames! — berrou, erguendo a colher de pau como se fosse batuta. — Hoje, perfeição absoluta! Nada de tropeços!

          Foi nesse exato instante que o sous-chef Júnior, nervoso, deixou cair uma bandeja com vinte ovos. O chão se encheu de clara e gema que se espalharam lentamente, formando um mosaico escorregadio.

— Desculpa, chef! — gritou Júnior, já de joelhos tentando limpar.
Mon dieu! — explodiu Arnaldo. — Isto não é cozinha, é ninho de galinha suicida!

            Dona Ritinha, a cozinheira mais antiga, mal segurava a risada enquanto mexia o molho numa panela enorme.

— Ué, chef, relaxa. Ovo é vida, não tragédia.

         Mas a calma não durou. O celular de Ritinha vibrou e, num descuido, caiu dentro do molho. O caldo borbulhou alegremente e, de lá de dentro, começou a tocar um forró bem alto.

— É minha filha! — exclamou Ritinha, tentando pescar o aparelho com a escumadeira.
Sacrilège! — gritou Arnaldo, erguendo as mãos ao céu. — Agora temos molho de tomate al ritmo nordestino!

          Enquanto isso, Tiaguinho, o garçom estagiário, surgiu correndo porta adentro.

— Chef, problema na mesa 5! A madame pediu prato sem glúten, sem lactose, sem sal, sem açúcar…

Arnaldo arqueou as sobrancelhas, incrédulo.

— Então o que resta, garoto? O prato vazio?

— Eu já levei pãozinho, mas ela disse que só aceita se for “pão de mentira”.

          Ritinha, rindo, completou:

— Pois dá um tijolo embrulhado, ué. Pelo menos sustenta mais que pão sem nada.

                A gargalhada ecoou, mas logo foi abafada pela entrada triunfal do tenor italiano, que invadiu a cozinha de braços abertos.

Signori! — bradou, com voz de trovão. — Minha sopa! Onde está minha sopa que desce como canção de amor?  

     O Chef, em puro pânico teatral, apontou para Júnior:

— Faça o consommé imediatamente! Fino, transparente, como lágrima de viúva!

           Júnior, atrapalhado, coou o caldo com um coador de café da copa. O líquido ficou preso, grosso e pastoso.

— Aqui está, senhor… — disse, servindo ao tenor com um fio de esperança.

          O cantor levou a colher à boca e arregalou os olhos.

Madonna santa! Isto não é sopa, é cimento com tempero!

           Nesse instante, Tiaguinho tropeçou com uma bandeja de pratos e caiu espalhando massa pelo chão. Um nhoque voou pelo ar e pousou no chapéu do chef.

Maledizione! — rugiu Arnaldo, arrancando o nhoque da cabeça. — Isto virou batalha campal!

           Do salão, no entanto, ouviam-se risadas e aplausos. Os clientes, fascinados, pensavam tratar-se de uma performance artística. O tenor, contagiado, abriu os braços e começou a cantarolar, transformando o caos em espetáculo.

Bellissimo! — disse, entre gargalhadas. — É teatro, é ópera, é cozinha viva!

         Arnaldo, suado e derrotado, apoiou-se na bancada.

— Talvez… talvez seja isso mesmo. A cozinha é um teatro. Só falta cobrar ingresso.

           Ritinha, sem perder o compasso, levantou a colher de pau como troféu.
— Se cobrar ingresso, chef, eu quero cachê dobrado.

         E todos riram, cobertos de farinha, molho e glória inesperada, como se a bagunça fosse mesmo o prato principal daquela noite.

PARTE 2

         O restaurante La Fine Fleur tinha fama de servir pratos tão delicados que até o prefeito da cidade usava guardanapo de linho como se fosse relíquia. Mas, naquela noite de gala, a cozinha se transformou em um palco de confusões que fariam inveja a qualquer companhia de teatro.

         O Chef Arnaldo, com seu sotaque “francês-goiano”, comandava como general em guerra.

Aujourd’hui, perfection! — anunciou, batendo a colher de pau na panela. — Não admito erros!

           Mas bastou terminar a frase para Júnior, o sous-chef, derrubar uma bandeja inteira de lagostas vivas no chão. As bichas começaram a desfilar pela cozinha, pinçando sapatos e aventais.

— Socorro! — gritou Tiaguinho, o garçom estagiário, subindo numa cadeira. — Essa daqui tá me perseguindo!

Mon dieu! — bradou Arnaldo, correndo atrás de uma lagosta como se fosse toureiro. — Isso não é cozinha, é safári marítimo!

           Dona Ritinha, tranquila, apenas chutou uma lagosta para dentro da panela.
— Uai, já que fugiu, agora vai virar sopa.

            Enquanto isso, na mesa 7, um casal de noivos discutia sobre o ponto da carne. O garçom levou o prato, mas a noiva reclamou:

— Esse filé está muito cru!

— E o meu está queimado! — retrucou o noivo.

          Para tentar agradar, Tiaguinho voltou correndo à cozinha. Mas, na pressa, trocou os pedidos: serviu o cru para o noivo e o queimado para a noiva. Resultado: a briga se transformou em comédia, com ambos rindo da troca e tirando fotos “gastronômicas”.

              Na mesa três, um crítico gastronômico rabugento resmungava que o risoto estava “mole demais”. O chef, já no limite da paciência, ordenou a Júnior:

— Refaz esse risoto! Quero grãos firmes, al dente!

               Júnior, no nervosismo, deixou o arroz passar do ponto de novo. Só que, sem perceber, colocou tanto queijo que o prato ficou elástico. Quando o garçom serviu, o crítico puxou a primeira garfada e o queijo esticou um fio que atravessava metade do salão.

               As pessoas começaram a aplaudir, pensando que era número artístico. O crítico, encabulado, resolveu sorrir e puxar o fio até o fim, como se fosse truque planejado.

                Na mesa dez, um grupo de políticos brindava com vinho caro. Um deles pediu:

— Garçom, traga-me um prato discreto, sem alho, sem cebola, sem cheiro nenhum.

               Ritinha, que ouviu o pedido, não resistiu:

— Pois leva um copo d’água a ele, ué.

                Tiaguinho, sem perceber a ironia, levou de verdade um copo d’água com raminho de salsa. O político, achando que era prato “minimalista moderno”, tomou como se fosse a coisa mais chique do mundo.

                No auge da noite, o tenor italiano levantou-se da mesa, ainda animado com a sopa de “cimento”. Invadiu a cozinha de novo, abriu os braços e gritou:

Questo ristorante è magia! Vocês não cozinham, vocês fazem espetáculo!

                Os clientes, já contagiados, começaram a bater palmas em ritmo. Alguns pediram para visitar a cozinha, transformando o espaço num verdadeiro palco improvisado.

               O prefeito, rindo como criança, colocou o chapéu do chef e fingiu comandar os cozinheiros:

— Silêncio! Agora quem manda aqui sou eu!

                 A plateia foi ao delírio. Júnior derrubou mais uma bandeja, Ritinha fez malabarismo com colheres de pau, Tiaguinho tropeçou de propósito para render risadas.

                 No final, todos estavam cobertos de farinha, molho e aplausos. O jantar se transformara em comédia involuntária — mas de tal sucesso que ninguém reclamou da comida.

                Arnaldo, cansado, se apoiou no balcão e murmurou:

— Talvez seja isso o futuro da gastronomia… cozinha-teatro…..

                Ritinha, limpando o celular cheio de molho, completou:

— Se for teatro, chef, já avisa: eu cobro cachê em euro.

                 E a cozinha inteira desabou em gargalhadas, como se tivesse servido, naquela noite, o prato mais raro de todos: alegria sem tempero errado.

PARTE 3

                O salão inteiro já tinha se transformado em plateia. As risadas ecoavam como num teatro cheio. Até as crianças imitavam Júnior, fingindo deixar pratos caírem no chão, enquanto os pais o aplaudiam como se fosse palhaço de circo.

                O crítico gastronômico, antes carrancudo, agora erguia taças de vinho e proclamava em voz alta:

— É a primeira vez que um risoto malfeito me diverte! Bravo, bravíssimo!

                 O prefeito, ainda com o chapéu do chef enfiado torto na cabeça, ordenou:
— Amanhã quero voltar e assistir a esse espetáculo de novo. Vamos transformar o “La Fine Fleur” em patrimônio cultural da cidade!

Patrimônio cultural? — repetiu Arnaldo, entre surpreso e exausto. — Mas eu só queria servir comida…

                Ritinha riu, enxugando o celular cheio de molho.

— Uai, chef… às vezes a vida tempera as coisas de um jeito que a gente nem planeja.

              O tenor italiano, emocionado, ergueu os braços como maestro e anunciou:
— De hoje em diante este restaurante não é mais só restaurante. É ópera, é comédia, é palco!

               A clientela explodiu em aplausos. Alguns gritavam:

— Repete a cena da lagosta!

— Faz o risoto elástico de novo!

                Arnaldo olhou em volta, atordoado. A cozinha em frangalhos, os pratos pela metade, o chão escorregadio de ovos, e, no entanto, a plateia delirava.        

                Respirou fundo, ajeitou o chapéu respingado de molho e declarou, com seu falso sotaque francês:

— Muito bem. Se é espetáculo que vocês querem… espetáculo terão. Mas aviso: o ingresso é caro, igual ao cardápio!

                 A gargalhada foi geral.

                  Enquanto isso, no fundo da cozinha, Júnior cochichou para Ritinha:

— Dona Ritinha… e se amanhã ninguém aplaudir?

— Ué, menino… aí a gente volta a cozinhar de verdade.

                 E assim, entre aplausos, risadas, massas e molhos respingando até no teto, a noite terminou.

                 Se o La Fine Fleur se tornaria restaurante ou teatro, ninguém sabia ao certo. Mas todos saíram com a sensação de que haviam provado um prato inédito — uma mistura de caos, humor e mistério — que ninguém jamais esqueceria.

                Nos dias seguintes ao desastre glorioso, o restaurante La Fine Fleur amanheceu com fila na porta. Não eram apenas clientes: havia curiosos, jornalistas, blogueiros de culinária e até turistas estrangeiros que tinham ouvido falar do “primeiro restaurante-teatro do Brasil”.

               Arnaldo, de olheiras profundas, encarava a multidão pela janela da cozinha.
Mon dieu… ontem foi acidente! Hoje querem que eu repita o acidente… como é que se repete tropeço?

               Ritinha, já fatiando cebolas, retrucou com a calma de sempre:

— Chef… tropeço planejado não existe, mas a gente pode inventar moda.

               Júnior, ainda mais nervoso, tremia com uma pilha de pratos na mão.

— Se quiser, eu derrubo de propósito, chef… mas e se ninguém rir?

— Eles vão rir, menino — disse Ritinha, piscando. — Aqui, até comida queimada virou sucesso.

                 À noite, o salão estava lotado. O prefeito trouxe comitiva de políticos, o tenor voltou com amigos do teatro, e o crítico gastronômico apareceu de novo, desta vez com bloco de anotações para escrever uma “crítica performática”.

                  No primeiro prato, Tiaguinho tropeçou — dessa vez de propósito — e deixou cair um nhoque na mesa do prefeito. A plateia explodiu em gargalhadas e aplausos. O prefeito ergueu o garfo e declarou:

— Bravo! Quero bis!

                  No segundo ato, Júnior deixou o arroz passar do ponto e apresentou um risoto que mais parecia cola escolar. O crítico, em êxtase, escreveu: “um risoto ousado, que rompe barreiras entre gastronomia e arquitetura”.

                  Na terceira cena, Ritinha fingiu ter deixado cair novamente o seu celular no molho e o forró ecoou pelo salão. Nesse instante, o tenor, já preparado, levantou-se para dançar. O público se levantou junto, transformando o jantar em baile improvisado.

                   Do lado de fora, repórteres faziam fila para entrar. Manchetes começaram a circular:

“La Fine Fleur: o restaurante que virou teatro”

“Alta gastronomia ou comédia pastelão? Descubra”

“Novo ponto turístico da cidade: venha rir e jantar ao mesmo tempo”

             Os clientes começaram a pedir ingressos com antecedência. O salão virou palco oficial, com mesas reservadas para “cenas clássicas”: a lagosta fugitiva, o nhoque voador, o risoto elástico.

              Arnaldo, que antes sonhava com estrela Michelin, agora via sua cozinha virar espetáculo popular. Um jornalista perguntou:

— Chef, o senhor se sente mais cozinheiro ou diretor de teatro?

Ele suspirou, limpando farinha da testa.

— Me sinto… sobrevivente.

Ritinha riu.

— Sobrevivente com bilheteria lotada, chef. Não reclame.

              Naquele instante, enquanto o público ria do prefeito com molho na gravata, o olhar de Arnaldo se perdeu além da cozinha.

— E se amanhã ninguém aplaudir…? — murmurou de novo.

              A resposta ficou no ar, como panela borbulhando sem tampa.

FINAL

Leia mais: O GRANDE ESPETÁCULO DA COZINHA

               A fama do La Fine Fleur só crescia. As reservas se esgotavam com semanas de antecedência, e já vendiam até ingressos com número de mesa marcado, como se fosse teatro. O cardápio virou quase um roteiro: “Primeiro ato: o tropeço do garçom. Segundo ato: a sopa cimentada. Terceiro ato: a lagosta fugitiva.”

               O público ria, aplaudia, gravava vídeos. Mas no coração do chef Arnaldo crescia uma dúvida incômoda: estaria ele ainda cozinhando, ou apenas encenando?

               Foi numa sexta-feira lotada que o clima mudou.

               Na mesa central, sentou-se um homem de terno preto, rosto sério, olhar afiado. Ficou em silêncio, sem sorrir. Os garçons cochichavam: ninguém sabia quem era, mas todos sentiram um arrepio.

               Tiaguinho, tentando animar, deixou cair uma taça de propósito. O salão explodiu em gargalhadas, mas o homem não mexeu um músculo. Apenas limpou calmamente o vinho que respingara em sua manga.

                Ritinha, sempre espirituosa, colocou mais um forró em seu celular, tocando alto para todos ouvirem; o tenor, desta vez, cantou junto com sua voz afinadíssima, fazendo a plateia bater palmas, gritando: bravo, bravo!!!! O homem, porém, permaneceu imóvel, mexendo a colher no prato, sem sequer olhar para a cena.

Mon dieu… — murmurou Arnaldo, observando. — Esse não ri.

                 Júnior serviu o famoso risoto elástico. Quando o fio de queijo esticou pela mesa, arrancando risos coletivos, o homem apenas cortou o fio com a faca e comeu em silêncio.

                 O salão inteiro foi esfriando, como se o riso batesse numa parede invisível. Aos poucos, as pessoas começaram a cochichar, inquietas. Até o prefeito, sempre animado, parecia desconfortável.

                 Por fim, o homem levantou o olhar para o chef e disse com voz grave:

— Vim aqui porque ouvi falar da sua qualidade. Mas não busco teatro. Quero apenas comida. Comida de verdade.

                  Silêncio. A cozinha parou.

                  Arnaldo, engolindo seco, respondeu com um fio de voz:

— Então… o senhor terá.

                   Preparou pessoalmente um peixe grelhado, molho delicado de alcaparras, legumes no ponto. Nada de tropeços, nada de risos. Apenas cozinha refinada.

                  O homem comeu em silêncio, limpou a boca com o guardanapo, pagou e antes de sair, deixou uma frase no ar:

— Às vezes, o verdadeiro espetáculo está na seriedade.

                 E foi embora, sem olhar para trás.

                 O salão inteiro ficou atônito, sem saber se aplaudia ou ficava quieto.

                  Arnaldo encarou sua equipe, depois a plateia. O dilema estava lançado: continuar como teatro, ou voltar a ser restaurante?

                   Ritinha quebrou o silêncio com um meio sorriso:

— E agora, chef… o próximo prato é comédia ou é drama?

                   Arnaldo não respondeu. Apenas olhou para a panela borbulhando, como se dentro dela estivesse o destino do La Fine Fleur.

                   E, assim, mais uma noite terminou, deixando no ar a pergunta: no dia seguinte o restaurante abriria cortinas ou panelas?