NOVELA
Capítulo 1 – O Primeiro Dia de Agosto
A cidade de Santa Aurora tinha dessas coisas que prendiam a gente entre montanhas e segredos. Um lugar pequeno, de ruas estreitas e casas antigas, onde o vento parecia carregar sempre o mesmo cheiro de terra molhada e os sussurros de histórias que ninguém contava em voz alta.
Era o primeiro dia de agosto, quando Júlio, 18 anos, aluno do ensino médio do Colégio Santana, percebeu que algo mudaria naquele semestre.
A professora apresentou a nova aluna:
— Esta é a Lia Ferreira. Espero que todos a recebam bem.
Lia, 17 anos, tinha um sorriso tímido e olhos que fugiam do contato direto, mas havia algo nela, algo invisível e vibrante que fez Júlio sentir o estômago afundar como se tivesse pulado de uma pedra alta em um rio gelado.
Ela sentou-se duas carteiras atrás dele, perto da janela. E quando o sol bateu no seu rosto, Júlio percebeu que estava perdido.
Capítulo 2 – Uma Cidade Pequena Não Esquece
Em Santa Aurora, ninguém precisava falar para saber. As coisas corriam por baixo das portas, entre as frestas, dentro dos olhares. Júlio cresceu sabendo disso. O pai, bancário da única agência da cidade, sempre dizia:
— Cidade pequena é assim: todo mundo sabe da sua vida antes de você saber dela.
E quando começou a circular um murmúrio sobre a nova aluna que Lia era trans, Júlio sentiu como se a cidade inteira segurasse a respiração. Alguns cochichos vieram carregados de ignorância; outros, de crueldade.
Mas ele não sabia exatamente o que sentir. Só sabia que, quando ela sorria, seu peito parecia acordar.
Capítulo 3 – Os Dois no Pátio
Um vento frio soprava no pátio quando Júlio criou coragem.
– Oi… é… você é nova aqui, né? – Ele falou, tentando parecer natural.
Lia sorriu, um sorriso curto, quase defensivo.
– É. Faz uma semana que me mudei pra cá.
Os dois caminharam até uma sombra de araucária. Lá, o mundo parecia mais silencioso.
– Espero que esteja gostando da cidade, disse ele.
– Ainda não sei, respondeu ela. – Às vezes eu acho que estou tentando caber num lugar que não foi feito pra mim.
Júlio sentiu vontade de dizer que ela cabia, sim. Mas não disse. Não ainda.
Capítulo 4 – O Peso da Casa
A mãe de Júlio era enfermeira e vivia cansada, mas sempre amorosa. O pai, não. A presença dele pesava como uma tempestade iminente. Eles jantavam juntos em silêncio quando o pai comentou:
– Ouvi dizer que tem uma menina nova no colégio. Mas dizem que não é bem menina, né?
Júlio congelou.
– Pai…
– Só tô dizendo o que ouvi, interrompeu, erguendo o copo de cerveja. – Hoje em dia, tudo é frescura.
Júlio percebeu que sua garganta secara. Não sabia como responder. Nem sabia se queria contar que ele gostava dela. Muito menos sabia como o pai reagiria.
Dormiu mal naquela noite, ouvindo os próprios pensamentos como gritos abafados.
Capítulo 5 – As Vozes do Corredor
A escola nunca foi gentil com quem fugia do padrão. Lia já sabia disso antes mesmo de chegar. No terceiro dia, encontrou palavras rabiscadas com giz no armário dela:
“VOCÊ NÃO ENGANA NINGUÉM.”
Ela respirou fundo. Apagou com a manga da blusa. Não chorou.
Mas Júlio viu.
– Quem fez isso? – perguntou ele.
– Não importa, disse ela, tentando não tremer. – Eu só quero estudar em paz.
– Mas importa pra mim.
Foi a primeira vez que ela o encarou de verdade. O olhar de Lia tinha camadas. Coragem. Cansaço. E uma dor antiga, que ela carregava como cicatriz.
Capítulo 6 – A Primeira Confissão
Eles desenvolveram o hábito de caminhar depois das aulas. No início, era só sobre coisas simples: música, filmes, matérias preferidas. Até que um dia, perto do rio, Lia falou:
– Eu fiz minha transição faz dois anos. Em outra cidade… não foi fácil. Meus pais me apoiaram, mas o resto não.
– Você é incrível — Júlio soltou, sem pensar.
Ela riu. Um riso surpreso.
– Eu sei o que dizem. Eu ouço. Sempre ouvi.
– E eu sei o que eu sinto — completou ele.
Lia corou.
– Júlio…
Ele se aproximou apenas o suficiente para que ela sentisse que não estava sozinha.
Capítulo 7 – As Primeiras Dúvidas
Júlio sabia que estava gostando dela. Mas não sabia como lidar com o conflito que se formava dentro dele. A voz do pai, os cochichos da escola, as dúvidas que nunca tivera antes.
Sempre achou que a vida seria simples: gostar de alguém, ser correspondido, fim da história.
Mas, agora, com certeza não era simples. Não porque Lia era trans – mas porque a cidade insistia em dizer que isso era um problema.
Às vezes, ele se perguntava se seria forte o suficiente para enfrentar isso.
Capítulo 8 – O Jantar na Casa de Lia
Os pais de Lia convidaram Júlio para jantar. Ele chegou nervoso, mas logo percebeu que ali o clima era mais leve. A mãe de Lia era professora de história; o pai, fotógrafo. Ambos calorosos.
— A Lia fala muito de você — disse a mãe, sorrindo.
Lia corou de novo.
O jantar correu tranquilo, e Júlio sentiu, pela primeira vez, que o mundo podia ser simples. Podia ser bom. Podia ser um lugar onde as pessoas se amavam sem pedir permissão.
Mas, quando voltou para casa, encontrou o pai esperando na varanda.
– Onde você estava?
– Na casa de uma amiga.
O olhar duro do pai fez o peito de Júlio apertar.
– Essa tal de Lia?
Silêncio.
– Júlio, você sabe que isso vai dar problema pra você, não é?
Aquela frase cortou mais fundo do que qualquer insulto na escola.
Capítulo 9 – O Beijo Que Mudou Tudo
Foi logo após a saída do colégio, perto da rua deserta que leva ao rio. Eles caminhavam juntos quando Júlio parou.
– Lia… posso te perguntar uma coisa?
– Pode.
– Você… gosta de mim?
Ela ficou em silêncio. O vento mexeu no cabelo dela.
– Eu gosto. Mas tenho medo — disse enfim. — Não de você. Do resto.
– Eu também tenho medo.
E, então, como se ambos decidissem ao mesmo tempo enfrentar o mundo, eles se aproximaram.
O beijo foi suave. E profundamente significativo. Como se dissessem um ao outro: Eu te vejo. Eu te escolho. Mesmo com tudo contra.
Capítulo 10 – O Tumulto
Claro que o boato do beijo se espalhou pela escola em menos de dois dias. Sempre tem alguém vendo naquela cidade. Primeiro como sussurro. Depois como risadas. Depois como insultos mais diretos.
Júlio percebeu os olhares mudando. Os amigos dele ficaram estranhos. Alguns pararam de cumprimentar.
Lia, acostumada a sobreviver a olhares, manteve o queixo erguido. Mas algo nela começou a ficar mais fechado, como se estivesse se preparando para uma tempestade.
Capítulo 11 – A Tempestade Chega
A tempestade teve nome: Caio. Colega de sala, sempre zombeteiro, sempre cruel.
Um dia, no pátio, ele gritou:
– Ô, Júlio! Vai namorar com o “menino”, é?
Risos.
Júlio avançou, mas Lia segurou seu braço.
– Não. Ele não vale a pena.
Caio continuou:
– Se quiser eu apresento uma menina DE VERDADE…
A bofetada de Júlio veio antes que ele pudesse pensar. O pátio inteiro silenciou.
Caio caiu no chão, surpreso e sangrando no canto da boca. A direção interrompeu a briga. Júlio foi suspenso por três dias.
E, naquele mesmo dia, o pai de Júlio explodiu.
Capítulo 12 – O Quase Fim
– Bater em colega por causa daquela menina? – o pai gritava, circulando pela cozinha como um touro.
– Ela não é “aquela menina”. Ela é a Lia!
– E você tá destruindo sua vida por isso!
– É a minha vida!
O pai avançou um passo, mas a mãe entrou no meio.
– Chega! – disse ela. – Júlio escolhe quem quiser. Você não vai tratá-lo assim.
O pai saiu batendo a porta. A casa tremeu.
Júlio sentou-se no chão, chorando. A mãe o abraçou.
– Filho… você não está errado por amar.
E foi a primeira vez que ele ouviu aquilo de alguém adulto.
Capítulo 13 – O Medo de Lia
No dia seguinte, Lia não apareceu na escola. Nem no seguinte. Nem no outro.
Júlio foi até a casa dela. Encontrou o pai de Lia preocupado.
– Ela não quer sair do quarto – contou ele. – Está com medo. Com vergonha. Com raiva.
Júlio bateu na porta.
– Lia? Sou eu.
Silêncio.
– Eu sinto sua falta.
Silêncio.
– Posso entrar?
A porta abriu uma fresta. Lia estava com os olhos inchados.
– Eu não quero que você se machuque por minha causa – sussurrou.
– Eu me machuquei porque fui idiota. Não por sua causa.
Ela o abraçou. Longo. Como se precisasse de coragem emprestada.
Capítulo 14 – Nota de Coragem
Juntos, decidiram escrever uma carta à diretoria da escola. denunciando assédio e discriminação. A notícia da carta circulou pela escola, gerando conversas, debates e até alguns apoios inesperados.
Um professor de sociologia elogiou em sala a coragem dos dois.
Alguns alunos assinaram um abaixo-assinado pedindo mais ações de proteção contra o assédio e a discriminação.
Lia começou a sorrir de novo. Não sempre. Mas o suficiente.
Capítulo 15 – Uma Cidade Que Aprende
Não foi fácil. Nada mudou da noite para o dia. Mas alguns muros começaram a rachar. Algumas pessoas começaram a pensar antes de repetir preconceitos.
A mãe de Júlio conversou com a mãe de Lia. O pai de Lia conversou com a diretoria. O professor de sociologia sugeriu palestras.
E, a contragosto, até o pai de Júlio começou a silenciar aos comentários agressivos-— não por aceitar, mas porque amava o filho mais do que amava suas certezas.
Capítulo 16 – Medos Ainda Existem
Uma tarde, à beira do rio, Lia disse:
– Júlio, você tem certeza disso?
– De nós?
Ela assentiu.
– Tenho. Não porque é fácil. Mas porque vale a pena.
Ela sorriu, mas havia uma sombra no sorriso.
– Eu tenho medo do futuro — confessou Lia. – Do que vão dizer… do que vão fazer. De até onde isso vai machucar você.
– Então vamos enfrentar juntos – respondeu ele. – Eu também tenho medo. E acho que… amar é isso. Caminhar com medo mesmo assim.
Capítulo 17 – A Festa da Primavera
Na festa da primavera, eles decidiram ir juntos. De mãos dadas. Sem se esconder.
Alguns olhares torcidos apareceram. Mas apareceram também olhares gentis.
E, no meio da música alta e das luzes coloridas, Júlio percebeu que Lia estava radiante. Não porque todos aceitavam. Mas porque, pela primeira vez, ela não estava sozinha.
Eles dançaram. Desajeitados, mas felizes.
Foi uma noite inesquecível!
Capítulo 18 – O Quase Adeus
No fim do ano, Lia, por ter sido a melhor aluna do ensino médio, recebeu uma proposta de bolsa de estudos numa universidade em outra cidade bem maior. A família discutiu por semanas.
Júlio tentava ser forte, mas a ideia de perdê-la doía como uma corda apertada demais.
– Você tem que ir – disse ele, enfim. – Precisa crescer onde vão te deixar crescer.
Ela chorou. Ele também. E se abraçaram como se o tempo fosse virar água entre os dedos.
Capítulo 19 – Um Amor Que Não Termina
Eles decidiram tentar manter o relacionamento à distância. Não sabiam se funcionaria. Não prometeram eternidade. Prometeram apenas verdade.
No último dia antes da mudança, sentaram-se à beira do rio mais uma vez.
— Júlio… obrigada por tudo — disse ela.
— Eu que agradeço. Você me ensinou a ser corajoso.
Ela riu, enxugando as lágrimas.
— Então prometa que vai continuar sendo.
— Prometo.
O beijo foi lento, dolorido e luminoso.
Capítulo 20 – Do Grito contra o Silêncio
Lia partiu em uma manhã fria. Júlio ficou olhando o carro da família desaparecer. Sentiu um vazio enorme, mas também esperança.
A cidade continuaria pequena, mas ele não seria.
As cartas seriam trocadas. As visitas, às vezes. A saudade, sempre.
E, no fundo, ambos sabiam: aquela história não era um fim. Era o começo de dois caminhos que se encontraram por acaso, e que, talvez, um dia se encontrem de novo.
Porque alguns amores não precisam de garantias. Só precisam existir.
E existir já era, para eles, um grito contra o preconceito do mundo.

