O ÚLTIMO PRAZO DE VALDOMIRO

Valdomiro Nunes sempre fora um homem metódico. Acordava às seis, tomava café às seis e quinze, lia o jornal às seis e meia e chegava ao trabalho às sete e meia, sem nunca ter se atrasado — exceto no dia em que o ônibus quebrou e ele quase teve um colapso nervoso. A vida era um relógio, e ele, um dos ponteiros.

Mas, certa terça-feira, o doutor Assis olhou pra ele com aquele ar de quem segura uma bomba-relógio de más notícias:

— Valdomiro… você tem, no máximo, três meses de vida.

Valdomiro piscou duas vezes.

— Três meses? Tipo… noventa dias?

— Isso.

— E se eu me cuidar?

— Uns cem.

— E se eu me descuidar?

— Oitenta.

— Então tá decidido: oitenta. Nunca gostei de prorrogação.

Saiu do consultório sem drama. Comprou um pastel de carne e, entre uma mordida e outra, pensou: “Se o prazo é curto, que seja intenso.”

Chegando em casa, pegou um caderno e escreveu em letras garrafais:

“Coisas para fazer antes de morrer (ou logo depois, se der tempo)”

  1. Saltar de paraquedas.
  2. Declarar amor à vizinha do 302.
  3. Roubar um cone de trânsito.
  4. Aprender a dançar tango.
  5. Fugir de um touro.
  6. Escrever um livro.
  7. Falar palavrão na missa.
  8. Sobreviver à lista.

A primeira tentativa foi o paraquedas. Subiu no avião tremendo, saltou, gritando “ADEUS, PLANILHAS!” e aterrissou num milharal. Saiu de lá com o paraquedas rasgado, o orgulho amassado e uma espiga no bolso.

— Lembrança do voo inaugural.

Depois, foi até o 302. Dona Odete, viúva beata e fiel de três missas por semana, abriu a porta com o terço na mão.

— Dona Odete, — disse ele, de peito estufado — estou com os dias contados e a senhora é o número dois da minha contagem regressiva.

Ela desmaiou. Quando acordou, bateu nele com o terço e prometeu rezar por sua alma.

Roubar o cone de trânsito foi fácil. Difícil foi explicar à polícia por que estava dormindo abraçado nele na praça. Disse que era uma metáfora da efemeridade da vida. O policial anotou: “suspeito confuso, mas inofensivo”.

O tango foi pior. Pisou no pé da parceira oito vezes e terminou beijando o espelho. A professora, com pena, o aplaudiu.

Muy bien, Valdomiro. Passion es esto.

Fugir do touro exigiu improviso: invadiu uma fazenda e provocou o bicho chamado Tremendão. Correu três quilômetros, pulou uma cerca e nunca mais viu o chapéu.

O livro, curiosamente, saiu bom: Como morrer de rir (sem morrer ainda). Começava assim:

“Se você está lendo isso, parabéns. Eu talvez já não esteja. Ou talvez esteja, mas disfarçado de cone.”

E, na missa do domingo seguinte, cumpriu o item sete: soltou um “AMÉM, PORRA!” tão alto que o padre travou. Depois riu tanto que a metade da igreja riu junto, sem saber por quê.

Um mês depois, o doutor Assis ligou.

— Valdomiro, houve um engano. O exame era do seu xará. Você está perfeitamente saudável.

— Saudável? — repetiu. — Quer dizer que eu não vou morrer?

— Não mais do que o normal.

Valdomiro ficou em silêncio por um instante.

— Doutor… o senhor acabou de me matar.

A vida normal parecia agora intolerável.

Tentou voltar à rotina — despertador, camisa engomada, café coado — mas o cheiro de tédio lhe deu enjoo. Precisava de uma nova missão. Assim nasceu:

“Coisas para fazer depois de (não) morrer”

  1. Criar uma religião.
  2. Fundar uma banda de rock.
  3. Fazer uma revolução (pacífica, se possível).
  4. Pedir Odete em casamento.
  5. Adotar um porco.
  6. Fingir ser guru motivacional.
  7. Invadir um programa de TV ao vivo.
  8. Sobreviver outra vez.

A religião nasceu no boteco da esquina: Valdomirismo Universal, cujo lema era “Rir é resistir à finitude”.

Os fiéis — três bêbados e uma senhora que era do grupo de crochê — o chamavam de Miro Iluminado.

Durante o primeiro culto, ele subiu numa cadeira e gritou:

— Irmãos, o milagre não é viver pra sempre — é pagar o boleto e continuar rindo!

Aplausos. Um bêbado chorou. A senhora fez um cachecol pro frio da eternidade.

Depois, fundou Os Sobreviventes do Prazo, banda de rock filosófico. Tocavam versões existenciais de modões sertanejos. A música mais pedida: “Ainda tô vivo, mas não sei por quê.”

A revolução começou no grupo de WhatsApp do condomínio. Protestou contra a taxa da garagem, declarou independência do Bloco C e hasteou um lençol branco na sacada. A síndica ameaçou chamar a polícia. Ele respondeu:

Viva la resistência dos estacionados!

Pedir Odete em casamento foi o ponto alto. Levou flores, ajoelhou-se e disse:

— Dona Odete, eu já enfrentei touro e paraquedas, mas o verdadeiro salto é a senhora. Quer se casar comigo?

Ela suspirou.

—Seu Valdomiro, o senhor é bom homem, mas eu já rezei tanto pela sua alma que agora seria adultério espiritual.

— Então me adote.

— Só se vier pra missa.

E assim nasceram a beata e o quase-morto que não morria nunca.

Adotou um porco chamado Aristóteles, que virou mascote da religião e da banda. O animal tinha até Instagram: @porcoiluminado.

As palestras vieram depois. Título fixo: “Como falhar com estilo e continuar sorrindo.”

— Meus amigos, — dizia ele — a vida é como um touro bravo: se você correr, ele te pega; se ficar, também.

 Então sorria e suba na cerca!

O público aplaudia de pé.

Logo o país inteiro conhecia Valdomiro: o homem que “enganou a morte e aprendeu a rir”.

Chamaram-no pra TV. O apresentador perguntou:

— Qual o segredo da felicidade, Valdomiro?

Ele pensou e respondeu:

— Todo mundo vive como se tivesse tempo de sobra. Eu só aprendi que sobra é o que a gente inventa quando não tem mais nada a perder.

Silêncio. Depois, aplausos. E Aristóteles grunhiu de emoção nos bastidores.

Naquela noite, Valdomiro voltou pra casa, colocou o cone de trânsito na varanda e olhou para a lua.

— Tá vendo, companheiro? No fim, a gente nem precisava morrer pra viver direito.

O cone ficou em silêncio.

E Valdomiro, satisfeito, dormiu tranquilo pela primeira vez em muito tempo — sem despertador, sem prazos, e com a sensação de que, finalmente, sua vida tinha começado.