A sirene soou às seis da manhã, como fazia todos os dias, e os portões da Metalúrgica Orion se abriram para mais um turno. O chão de fábrica exalava um cheiro metálico e quente, uma mistura de óleo queimado e ferro fundido. As máquinas começaram a rugir, enchendo o galpão com o som repetitivo e hipnótico das prensas e tornos.
Era terça-feira — e, até aquele dia, nenhuma terça na Orion jamais havia trazido surpresas.
A primeira a perceber que havia algo errado foi Cláudia, supervisora de produção. Quando passou pela sala de controle, notou a luz vermelha piscando sobre o painel central de registros. A tela marcava uma falha técnica no Forno 4, que deveria ter sido desligado na madrugada anterior. No entanto, o mostrador indicava que ele permanecera em atividade por mais de oito horas — sem operador designado.
— Deve ter sido erro de leitura — murmurou ela, tentando convencer a si mesma, enquanto digitava a senha de acesso.
Mas o sistema mostrava algo mais perturbador: o forno havia sido religado manualmente às 2h37 da madrugada. O crachá usado para a autorização pertencia a alguém que não deveria estar ali: Mário Nogueira, técnico de manutenção afastado havia duas semanas por problemas de saúde.
Clàudia caminhou até o setor do forno. A área estava vazia, exceto pelo leve vapor que se erguia das placas de aço aquecidas. O relógio de ponto de Mário não registrava nenhuma entrada. Não havia câmeras funcionando naquele corredor — um defeito antigo, adiado infinitamente por conta do orçamento.
Ela sentiu um frio subir pela espinha.
Pouco depois das oito, a notícia correu: encontraram um capacete e uma chave de fenda dentro da comporta do forno. Nenhum vestígio de Mário. O calor intenso havia apagado qualquer pista mais delicada.
O setor de segurança isolou a área, mas as perguntas ecoavam nos corredores da empresa com mais força que as sirenes: como alguém conseguira entrar sem registro? Por que apenas aquele forno? E por que justamente o crachá de um funcionário afastado havia sido usado?
Na reunião de emergência, o gerente de operações, Sr. Tavares, manteve a voz firme, mas a mão tremia ao segurar os relatórios.
— Não falem com a imprensa. Oficialmente, foi um “incidente técnico”. Internamente, tratamos como desaparecimento.
— Mas alguém usou o crachá dele — rebateu Cláudia, encarando-o. — Ou foi o próprio Mário.
Um silêncio pesado tomou conta da sala. Todos sabiam que o crachá ficava guardado no armário da portaria administrativa. Apenas quatro pessoas tinham a chave daquele armário.
À noite, quando as máquinas pararam e os corredores ficaram mergulhados em meia-luz, Cláudia decidiu retornar ao setor do forno. Algo a incomodava: o painel havia sido religado manualmente, mas desligado por comando remoto, vindo da sala de supervisão central.
Ela caminhou em silêncio até lá. A porta estava entreaberta — o que era proibido. Dentro, apenas as luzes frias dos monitores piscavam. O último comando no sistema trazia um nome de usuário: Tavares.
Um estalo metálico ecoou no corredor atrás dela. Ela se virou… e não viu ninguém.
Quando voltou os olhos para a tela, a linha de comando que mostrava o nome do gerente desaparecera, substituída por uma sequência de caracteres sem sentido, como se alguém estivesse editando o sistema em tempo real.
A respiração de Cláudia acelerou. O sistema de câmeras da sala estava desligado.
E então, uma voz distorcida sussurrou, vinda dos alto-falantes da fábrica vazia:
— O turno ainda não acabou…
No fundo do galpão, o forno que deveria estar inativo, começou a roncar de novo, como se alguém o tivesse acabado de acionar.
Ela correu. Mas no corredor, ao lado do forno incandescente, estava no chão o crachá de Sílvia que, até então, deveria estar pendurado em seu pescoço.
O Forno 4 rugiu mais alto. E, pela primeira vez na história da Orion, a terça-feira jamais foi esquecida.
— O turno ainda não acabou…, repetia aquela voz rouca saída dos alto falantes.