Paula sempre acreditou que o amor era uma questão de sintonia — como duas rádios que, por acaso, se encontram na mesma frequência. Por isso, quando conheceu Clara, no sarau do bairro, ela sentiu aquele estalo que vinha acompanhado de um leve descompasso no coração.
Clara era uma mulher de riso rápido, olhar firme e mãos inquietas. Tinha um jeito de ocupar o espaço como quem não devia nada a ninguém. E Paula, com seu vestido azul e a voz doce que ainda aprendia a ser firme, ficou ali, parada, ouvindo-a declamar um poema sobre jardins e liberdade.
Depois do sarau, conversaram. Falaram de literatura, de café coado, de como ambas preferiam os dias nublados. E no meio de uma frase qualquer, Paula contou — sem preparo, mas com calma — que era uma mulher transexual.
Clara ouviu em silêncio. Depois, disse apenas:
— Você fala disso com uma paz que eu invejo.
Paula sorriu.
— Levei tempo pra chegar aqui.
As duas começaram a se encontrar mais. No café da esquina, no parque aos domingos, nas mensagens trocadas à noite. Clara, que sempre se dizia lésbica convicta, começou a se confundir com o próprio desejo. Não era apenas o corpo de Paula que a atraía — era o jeito que ela olhava o mundo, com aquela mistura de coragem e delicadeza.
Uma tarde, enquanto caminhavam entre as flores do Jardim Botânico, Clara parou e disse:
— Eu não sei o que isso é. Mas sei que gosto de estar com você.
Paula não respondeu. Apenas estendeu a mão. Caminharam assim, lado a lado, com os dedos se tocando como quem testa a temperatura da água antes de mergulhar.
O sol se escondia, o ar cheirava a terra molhada, e nenhuma delas sabia se aquilo era o começo de algo ou apenas um instante bonito.
Mas talvez fosse isso mesmo o amor: um intervalo leve entre o medo e o riso.
E foi nesse intervalo que elas ficaram — suspensas, inteiras, reais.
Os dias foram se tornando uma sequência de pequenas presenças. Clara trazia pães de queijo quentes nas manhãs de sábado; Paula preparava café forte e colocava música francesa para tocar baixinho. Às vezes, conversavam por horas. Outras, o silêncio bastava — aquele silêncio de quem não precisa provar nada.
Certa vez, Clara ficou observando Paula enquanto ela pintava as unhas de vermelho diante do espelho. Havia algo de hipnótico naquele gesto, uma confiança serena.
— Você sempre parece saber quem é — comentou, sem pensar muito.
Paula riu, soprando o esmalte para secar.
— Saber, eu sei. A parte difícil foi convencer o mundo disso.
Clara se aproximou, encostou o queixo no ombro dela e disse baixo:
— O mundo é meio surdo mesmo.
Naquela tarde, o beijo aconteceu. Sem ensaio, sem suspense. Um beijo molhado e saboroso, como quem se reconhece.
Depois disso, não se tornaram imediatamente um casal. Continuaram com as próprias vidas, mas havia um fio invisível entre as duas. Paula começou a aparecer nas fotos do celular de Clara, nas legendas das manhãs preguiçosas, nos planos de viagens que talvez nunca fizessem.
Houve também os tropeços: os olhares curiosos quando caminhavam de mãos dadas, a hesitação de Clara ao apresentá-la a algumas amigas, o medo — esse companheiro antigo — rondando as duas. Mas aos poucos, o medo foi se tornando menor que a vontade.
Uma noite, no mesmo jardim onde haviam se tocado pela primeira vez, Clara levou uma garrafa de vinho e duas taças.
— Acho que a gente está virando algo — disse ela, rindo.
— “Algo” já é um bom começo — respondeu Paula, dando uma boa e gostosa risada.
O vento balançava as folhas, e o som da cidade vinha distante e brando. Clara encostou a cabeça no ombro de Paula e, por um instante, tudo pareceu se encaixar.
Não havia promessa. Nem certeza. Elas não falavam sobre isso. Só sentiam,…
Mas havia presença — e a delicada impressão de que, se continuassem caminhando lado a lado, o caminho se deixaria inventar.
Paula se mudou para um apartamento pequeno, cheio de luz pela manhã e barulho de pardais na janela. Clara começou a frequentar e, sem perceber – ou percebendo, deixou ali uma escova de dentes, depois uma camiseta, depois um livro esquecido.
Logo as duas já tinham um ritmo. Paula acordava cedo, fazia café e falava com as plantas do parapeito. Clara acordava atrasada, tropeçando nas próprias meias, e jurava que ia aprender a ser pontual “um dia desses”.
Entre risos e distrações, a vida foi se misturando. Às vezes discutiam por bobagens — quem tinha deixado o ventilador ligado, ou por que Clara sempre esquecia a toalha molhada em cima da cama. Mas era uma convivência leve, feita de reconciliações espontâneas, daquelas em que o perdão vem antes mesmo do pedido.
Certa noite, chovia forte. O barulho da água batendo no vidro parecia um abrigo. Clara, com o cabelo desgrenhado e uma camiseta enorme de Paula, estava sentada no sofá lendo em voz alta um poema que falava sobre “corpos que se encontram fora do tempo”.
Paula escutava, encostada na parede, e pensava em como era estranho — e bonito — sentir-se em casa com alguém.
— Sabe o que eu descobri? — disse Clara, fechando o livro.
— O quê?
— Que eu não me apaixonei por uma mulher trans. Me apaixonei por você.
Paula abriu um sorriso enorme.
— Que bom. Ser eu dá muito trabalho!
Riram muito, e o riso se misturou ao som da chuva e dos corpos que se enroscaram.
Na manhã seguinte, o sol apareceu tímido, e o cheiro de café invadiu o quarto. Paula olhou para Clara dormindo e pensou que talvez o amor não fosse uma chegada, mas uma travessia — feita de passos hesitantes, de pausas, de coragem.
Lá fora, o jardim ainda molhado brilhava ao sol. Um pássaro pousou na grade, sacudindo as asas.
Paula abriu a janela, respirou fundo e algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto. Não sabia o que viria depois — mas, pela primeira vez, isso não parecia importar.


