No começo daquele verão, quando o sol parecia derreter até as pedrinhas da rua, aquela pequena cidade do interior do Ceará ganhou algo completamente inesperado: um grupo de adolescentes que decidiu transformar a velha praça, antes um tanto abandonada, em um palco de ideias. Eles se autodenominaram Coletivo do Futuro, embora ninguém soubesse exatamente quem inventou o nome e porquê.
A líder, ou pelo menos quem falava mais alto, era a Beth, uma garota de 16 anos que sempre carregava um caderno cheio de frases sublinhadas e desenhos que ninguém entendia direito. Junto com ela estavam Mateus, o mais velho, que vivia de fone de ouvido e tinha uma calma que irritava; Neco, que sempre mudava de opinião no meio da própria frase; e Duda, que enxergava beleza onde ninguém via, como rachaduras em muros ou folhas secas.
Eles tinham um plano: revitalizar a praça. Queriam pintar os bancos, arrumar o chafariz e fazer um mural. Parecia simples. Mas, como tudo que desafia o jeito “tradicional” de uma cidade pequena, logo veio o atrito.
O problema começou quando a tinta colorida apareceu.
– Isso aí vai virar bagunça, resmungou Seu Arlindo, dono da mercearia e guardião informal da opinião pública.
– Vocês não pediram autorização da prefeitura, completou Dona Cida, que morava de frente para a praça e detestava barulho, qualquer barulho.
Beth tentava argumentar, mas quanto mais explicava, mais a confusão crescia. As pessoas não pareciam escutá-la de verdade.
Mesmo assim, o grupo continuou. Cada tarde era uma pequena batalha: alguém reclamava do cheiro da tinta, outro reclamava do som da caixa de música, enfim, do fato de “garotos” acharem que podiam mudar algo que adultos jamais tentaram.
Mas a tensão piorou quando decidiram pintar um grande mural no muro com o seguinte desenho: uma menina segurando uma lanterna ligada, iluminando o caminho. Abaixo do desenho, Beth escreveu: “Para enxergar melhor.”
– Isso é política, disse um funcionário da prefeitura, com uma expressão que misturava medo e autoridade.
– Melhor apagar antes que vire problema.
A frase virou fogo. Os adultos discutiam, os jovens se dividiam e até dentro do Coletivo Aurora surgiram rachaduras.
– Beth, você força demais, reclamou Mateus. – A gente queria só arrumar a praça… não virar notícia.
– Mas, se a gente não incomoda, nada muda! – Beth respondeu, quase gritando.
– Mudar o quê? – Neco perguntou, confuso, como se, de repente, não soubesse mais por que estava ali.
A discussão quebrou mais do que o grupo: quebrou o silêncio da cidade, aquele silêncio que escondia tudo o que ninguém queria olhar.
Naquela noite, alguém cobriu o mural com tinta cinza. Não houve testemunhas. Só o cheiro recente e o rastro no chão.
Na manhã seguinte, Duda encontrou Beth sentada diante do muro recém pintado.
Ela não chorava. Não sorria. Apenas observava o cinza, como quem tenta entender…
– Vão perguntar se fomos nós, disse Duda.
– Vão sim, respondeu Beth; e vão acreditar no que quiserem.
O resto do Coletivo do Futuro chegou aos poucos, silencioso. Não sabiam se deviam recomeçar, protestar, desistir… ou apenas ir para casa.
A praça estava igual a antes, mas, também, completamente diferente.
E, enquanto o sol subia, iluminando o cinza e os adolescentes ali, parados, ficou difícil saber o que viria a seguir: se seria o fim do Coletivo do Futuro ou, talvez, o começo de algo que ninguém conseguia nominar até então.
Porque, às vezes, quando uma luz é apagada, outra começa a acender em algum lugar que ninguém está olhando.


